A cilada do parto domiciliar

Conheça todos os riscos envolvidos no parto domiciliar.

Quero abordar desta vez um tema muito em voga atualmente, até associado a um certo romantismo por parte das gestantes, uma espécie de “volta aos bons tempos” de quando os bebês nasciam naturalmente, e em casa. Me refiro ao parto domiciliar e às chamadas casas de parto.

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Nosso doutor tem baixa tolerância a clichês e frases feitas

Cabe ressaltar que não se trata de uma discussão sobre parto normal x parto cesariano. Não quero discutir sobre vantagens de um, complicações de outro, apesar de já estar bem claro que o parto normal tem bem menos complicações que a cesariana.

Enfim, há uma tendência ao retorno do trabalho das “parteiras”, ou então das chamadas casas de parto, apenas com o auxílio de uma enfermeira obstétrica. Leia-se, sem a supervisão de um médico.

Não se trata de “querer defender o filão dos obstetras” (coisa que nem sou, aliás) ou querer prejudicar outros profissionais da área de saúde, mas o parto sem assistência médica especializada é de uma irresponsabilidade sem precedentes.

Provo meu raciocínio a seguir

A literatura mostra que 80-85% dos partos normais ocorrem sem anormalidades, e até por isso a humanidade pôde chegar até aqui. Nestes casos, a criança nascerá até sozinha. Com a presença de um profissional de enfermagem bem treinado, reduz-se bastante o sofrimento de  mãe e feto em relação ao parto sem assistência nenhuma. Até aí tudo bem. É uma forma de humanizar o processo, tão mecanizado nos dias de hoje.

Contudo, quem se ligou nos números deve estar perguntando: “Mas e os outros 15-20% ?”

Justamente aí está a cilada do parto domiciliar. São taxas de complicações que tornam imprescindível a presença de um médico, fato que não acontece no parto domiciliar. E se a logística de uma casa de parto for boa, esta se localizará próxima a um hospital. E mesmo assim não é o ideal.

Uma questão que leva gestantes a procurar alternativas ao parto em hospitais, é a aparente frieza destes e dos obstetras. Muitos obstetras acabam superindicando cesarianas por conveniência própria (ou outro$ fin$ meno$ nobre$). Além disso, procedimentos como a anestesia, tricotomia (raspagem dos pêlos) a episiotomia (corte na parede vaginal para facilitar a saída do bebê) são de rotina quando da admissão da gestante em ambiente hospitalar.

Na casa de parto, inegavelmente há um calor humano maior, maior naturalidade no processo, inclusive todo uma preparação para o evento. Mas e caso ocorram eventualidades? Muitas vezes não dá tempo de remover a gestante, se o parto for domiciliar então, complica de vez. Isto pode custar uma vida. Isto pode causar seqüelas irreversíveis na criança. Aliás, pode custar até duas vidas, mãe e bebê.

O que pode dar errado num parto normal?

Alguns problemas que requerem intervenção adequada.

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Nascer na selva é lindo, mas essa cobertinha veio da Tok Stok

- Apresentação pélvica : A criança, ao invés de sair com a cabeça primeiro, sai com o bumbum primeiro. Pode ocorrer da cabeça entalar na pelve, e isto pode requerer manobras específicas para retirada da cabeça, bem como uma cesariana de urgência. A perda de tempo significa falta de oxigênio no cérebro da criança, o que leva primeiro a um quadro de paralisia cerebral, e se prolongado, ao óbito.

- Descolamento prematuro de placenta : Pode precipitar o parto tanto como ocorrer durante. Causa hemorragia profusa, com sofrimento fetal agudo, e pode matar a mãe tanto de choque hipovolêmico (ela precisará de uma transfusão e de um CTI, provavelmente) como de problemas de coagulação, e nestes casos, se o sangue não coagular, estará indicada uma histerectomia (retirada do útero) de urgência.

- Dor incontrolável : Que o parto dói, todo mundo sabe. Porém há casos mais graves, que necessitam de controle feito por anestesista. As pessoas têm limites de tolerância diferentes, e a supervisão por profissional anestesiologista é fundamental.

- Cuidados com o recém-nato : Num parto realizado em hospital, logo após a saída do bebê, este é levado a uma espécie de incubadora, onde um pediatra presta a primeira assistência, avaliando as condições respiratórias e cardíacas do bebê.

10% dos recém-natos precisam de algum procedimento específico para iniciar a respiração, e 1% de medidas bastante agressivas para sobreviver. Muitas vezes, o tempo que se tem é de SEGUNDOS, de diferença entre vida e morte.

Implicações legais e práticas

A Agência Nacional de Saúde lançou um novo rol de procedimentos e eventos que fere a legislação vigente, ao permitir a cobertura dos planos de saúde aos partos feitos exclusivamente por enfermeira obstétrica.

Qualquer profissional sabe que um parto mesmo classificado como de baixo risco, pode se tornar subitamente uma emergência que exige profissionais médicos experientes e todo um aparato específico, coisa que só um hospital bem equipado pode fornecer.

Segundo determinação do Conselho Federal de Medicina, o médico não pode emitir declaração de óbito nos casos em que houve atuação de profissional não-médico. Cria-se um sofrimento a mais para a família de um eventual recém-nato morto, pois obrigatoriamente, o corpo vai para o IML.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura o atendimento médico aos recém-nascidos. Desta forma, a conseqüência da medida da ANS é deixar mãe e filho em situações de risco.

Em números

Até meados do século passado, no tempo das parteiras em casa, morriam 150 mulheres a cada 100 mil partos com bebês nascidos vivos.

Nas últimas décadas, graças à melhoria de condições hospitalares e ganho de conhecimento tecnológico, tal índice caiu para 51 a cada 100 mil. Número ainda alto perto do recomendado pela ONU (mais que o dobro), porém significa a preservação de milhares de vidas. Ignorar tais benefícios é um retrocesso inaceitável, que coloca gestantes e recém-nascidos em situação de risco.

Concluindo

A imensa maioria dos partos não causa problemas. Porém, não cabe falar em gestação de baixo risco, pois uma destas pode se tornar de alto risco em questão de segundos.

O intento deste texto não é diminuir ou denegrir a participação de demais profissionais da área de saúde quanto da humanização do parto, porém, a ausência de um aparato específico pode custar vidas. Risco que definitivamente não vale a pena correr, 15 a 20% pode não parecer muito, mas em se tratando de um país com alta taxa de natalidade como o nosso, isto significa milhares de vidas em risco.

Dr Health, que se arrepende de não ter feito nenhum parto na faculdade, pois havia escolhido a ortopedia muito cedo e focou sua formação nela. Deve ser um momento inenarrável.


publicado em 04 de Maio de 2008, 18:04
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Mauricio Garcia

Flamenguista ortodoxo, toca bateria e ama cerveja e mulher (nessa ordem). Nas horas vagas, é médico e o nosso grande Dr. Health.


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