A ferida narcísica: primeiro olhar

A lenda conta que Narciso tomou por outra pessoa seu reflexo em um lago e enamorou-se dessa imagem. Ao tentar beijar o objeto de seu amor, caiu na água e morreu afogado, o otário. Essa é a base mítica daquilo que é denominado “ferida narcisíca”, algo que interessa a todos nós.

Interessa sim, pois provavelmente você ainda não a sentiu o suficiente

Narciso, pintura atribuída ao pintor Caravaggio, pintado entre 1597 e 1599
Narciso, pintura atribuída ao pintor Caravaggio, pintado entre 1597 e 1599

Uma forma bem fácil de explicar a ferida narcísica é dizer que as três principais feridas da humanidade ocorreram nos últimos séculos: com Copérnico, descobrimos que não somos o centro do universo; com Darwin, descobrimos que somos apenas chipanzés superdesenvolvidos -- com Freud, descobrimos que nossas atitudes nobres mal ocultam nossos instintos primitivos.

A cada descoberta, o Narciso-Humanidade mergulhou no lago e viu que aquela imagem projetada na superfície não passava de uma miragem. Apesar da decepção, a cada mergulho afogaram-se suas ilusões e o homem emergiu fortalecido.

Fortalecido sim, pois há uma grande potência em descobrir o quão pouco se pode

Assim como a humanidade, cada ser humano, em sua vida íntima, depara-se com a ferida narcísica ao perceber que seus melhores sonhos, maiores vaidades e mais queridas expectativas não correspondem em absoluto à realidade. Na verdade, quase sempre que algo nos incomoda no cotidiano é porque, no fundo, levantaram a casquinha da ferida e cutucaram justo lá, onde a pele é bem vermelha e mais sensível.

Mas isso é bom.

É uma oportunidade e tanto de realmente evoluir. É essencial que Percival reconheça a ferida de Anfortas. Afinal, um homem comum que se julga gigante vê um objeto longínquo e supõe que basta esticar o braço para alcançá-lo. Esse gesto, contudo, será obviamente em vão. Porém, se tiver a sorte de decepcionar-se e descobrir que não passa de um homem com estatura normal, poderá ir até o objeto e efetivamente agarrá-lo, nem que para isso precise caminhar um bocado.

Caminhar um bocado sim, pois é a planta do pé firmada no chão batido que nos permite seguir com a cabeça erguida

Toda vez que alguém falece em nossa família, sofremos uma ferida narcísica, pois temos a consciência do quão pouco podemos diante de um destino que parece, sejamos sinceros, aleatório e inclemente. Nossa incapacidade de, às vezes, aliviar a dor de um ente querido revela o quão nossa própria condição humana é frágil.

Mas nem todo mundo nasceu para ver e -- principalmente -- entender Gritos e Sussurros. Desse modo, se quisermos, podemos ignorar a lição e narcotizar nossa consciência com alguma distração. Mas, agindo assim, continuaremos para sempre crianças perdidas.

Crianças perdidas sim, pois só um adulto sabe dar valor ao poder que emerge de cada derrota

"Eu não quero mais ser criança!"
"Eu não quero mais ser criança!"

Toda vez que algo ou alguém nos rejeita, seja em uma entrevista de emprego, em uma amizade proposta, em um flerte ensaiado, em uma prova de capacidade ou em um concurso público, mergulhamos novamente no lago.

É quando mais um pouco do Narciso morre e, se formos perspicazes, o que emergirá será alguém mais desperto.

Aprenderemos que o universo não é um espelho pronto para refletir nosso ego -- esse pequeno ego que, nas palavras de Muriel, deveria apenas operacionalizar nossa relação com o mundo circundante, ao invés de agir como déspota de nossa psique, como reizinho mimado e arrogante.

Bom, nada melhor para destronar esse tirano do que um banho no lago onde está a verdade, pois a cada mergulho ele perde um pouco de seu mando.

Perde um pouco de seu mando sim, pois percebemos que a vida é muito maior que nossos desejos

Por isso (ah, e era aqui que eu queria chegar!), caso façamos o dever de casa direitinho, atingiremos certa idade na qual se desenvolver é um processo automático, exercendo uma força gravitacional sobre nossas escolhas.

Não há decepção que não seja, a par toda tristeza inerente, um degrau a mais em que nosso pequeno ego esmorece e é deixado para trás. E esse esmorecer é sempre uma espécie de vitória sobre si mesmo. A partir de então, sempre que somos feridos, algo em nós sorrirá gentilmente, por saber que se trata de uma oportunidade de ouro para fazer brotar uma consciência maior.

Eu ouso até dizer que há um momento de nossas vidas no qual passamos a procurar a desordem, o caos e o problemático, não por masoquismo, mas por termos aprendido que, a cada queda, o que morre era destinado a assim morrer, e o que se ergue é o que tinha de assim nascer.

Tinha de nascer sim. E a tudo que nos derruba devemos um “muito obrigado”

truman

E àqueles que nos derrubaram ou ainda vão derrubar, devemos um dia dizer: “é uma pena que você jamais venha a dar-se conta do quão longe fui graças ao que ocorreu, pois há certas distâncias que seu olhar simplesmente não pode alcançar e, aqui do alto onde estou, tudo tem outra proporção”.

Update:

Nota do editor: De acordo com muitos comentários, o autor respondeu uma contextualização em profundidade do desfecho de seu artigo. Achamos por bem a publicação direta no post para o melhor entendimento desse texto. Segue abaixo:



Bom, vamos lá. Estou no trabalho então vou fazer o possível para responder agora, esperando ter mais tempo de noite.
Contextualizando, esse texto é um texto antigo que escrevi em meu blog, e o pessoal do PdH me pediu alguma coisa para essa semana porque não tive tempo de escrever um outro que eu havia prometido a eles. Propus vários textos do meu blog e chamei a atenção dos editores para esse. Isso na sexta ou quinta da semana passada, antes de sair em viagem, meio na correria.
Esse texto, então, é um artigo de um blog pessoal que (e eis onde quero chegar) vem na sequência de vários outros textos escritos na época (alguns do meu blog anterior, no blogspot) e era destinado a amigos que já acompanhavam minhas ideias. Reparem que o texto, inclusive, faz alusão a uma amizade pessoal minha (Muriel), sem explicar quem é a pessoa.
A questão é que o "pecado" do último parágrafo é a descontextualização do texto. Quando me referi a "do alto onde estou", é compreensível que a primeira impressão dê a entender, de fato, a ideia de um "rei da montanha", de alguém que se acha superior aos outros - e isso, claro, parece uma experiência própria do ego. Essa ideia é reforçada pela imagem final, que é muito feliz ao associar o texto com o filme Truman Show, mas isso depende de que o leitor perceba o sentido da cena final do filme, que não é de superioridade e de arrogância, mas de libertação. Se não perceber, a imagem, assim como o texto final, pode ensejar uma outra leitura - pode ensejar a noção do conceito de superioridade arrogante.
Porém, o conceito original é outro, e vem de algumas antigas abordagens minhas sobre uma metáfora de C. G. Jung (na introdução da tradução de um livro taoísta): quando se fala "(...) do alto onde estou (...)" quem fala não é um cara do alto da montanha, ou do alto da escada - é a própria montanha, é a própria escada quem está falando.
Na introdução de "O Segredo da Flor de Ouro", de Richard Wilhem, C. G. Jung vem com a feliz metáfora de que todos somos como montanhas, com o detalhe de que nossa consciência costuma habitar apenas o sopé de nosso ser, onde há tempestades e mudanças abruptas de clima (o que é mais ou menos a residência do ego), e que a evolução, o desenvolvimento humano, significa ampliar a consciência para que também abranja a parte de cima dessa montanha de nossa psique, a parte que está acima das nuvens e das mudanças climáticas, de forma que nosso ser observe as tempestades lá embaixo e, embora seja ainda afetada por elas (as tempestades continuam, a consciência é que se ampliou), não é a integralidade de nossa consciência que é afetada, mas apenas aquela parte que continua ainda lá embaixo -- ou seja, o ego.
Não há, dessa forma, uma ideia de que há alguém lá em cima, totalmente isolado e superior, que se apartou de tudo que está abaixo, mas sim de um "continuum" que vai da parte mais abaixo até a parte lá em cima, tudo isso integrado em uma mesma psique, em uma mesma pessoa: ela está lá embaixo e, simultaneamente, também lá em cima, como uma montanha que é o sopé e o cume.
Porém, e isso é claro, quando se chega nesse ponto (e é um ponto situado no futuro, coisa que se nota no uso da expressão "um dia", no último parágrafo: desse modo, não afirmei que já estou lá, mas projetei no futuro uma esperança para todos os que estão dispostos ao aprendizado) torna-se natural que, nos momentos de maior reflexão, nossa consciência assuma a perspectiva do cume da montanha, na qual possamos ver o quadro geral das coisas de nossa vida em uma maior perspectiva.
É uma perspectiva não alcançável pelo ego -- e uma perspectiva, infelizmente, na qual muitos outras pessoas AINDA não chegaram - e, por tal razão, são elas incapazes de perceber o quão longe outros foram, pois AINDA não enxergam as distâncias que, quando sua consciência chegar ao cume da montanha que elas próprias são, poderão enxergar.
E, perceba-se, não há, em absoluto, qualquer ironia na expressão "é uma pena", também presente no último parágrafo do texto. É, de fato, uma pena, um motivo de tristeza, ver o quanto outras pessoas estão ainda presas na perspectiva do sopé da montanha que são. E é ainda mais doloroso compreender que muitas morrerão sem sequer galgar alguns metros a mais em sua vida.
Essa constatação de diferenças de níveis de consciência pode soar arrogante, mas não o é, de modo algum: é apenas a constatação de um fato da vida - o fato de que escolhemos, de certa forma, aquilo que queremos ver, o fato de que há a perspectiva do pássaro e a perspectiva da rã, e se escolhemos a segunda perspectiva não soa justo acusarmos o pássaro de arrogante tão somente porque ele decide voar de vez em quando, coisa que também poderíamos fazer.


publicado em 28 de Julho de 2013, 21:00
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Victor Lisboa

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