A inútil luta com os galhos: o governo como boneco de Judas | WTF #22

Tem gente que passa a vida inteira
Travando a inútil luta com os galhos
Sem saber que é lá no tronco
Que está o coringa do baralho

Rauzito

Recentemente, com a enxurrada de textos provocados pela atual conturbação social no Brasil, li alguns articulistas mencionando o fato de que, quando se fala em corrupção, não se está falando apenas do governo, mas dos corruptores ativos, isto é, dos grandes grupos de interesse.

Esse fato muito real escapa à maioria das pessoas que falam sobre o assunto: espera-se idoneidade moral de um político, mas não se desafia a ideia de que essa idoneidade não é possível com os grupos de interesse econômicos ativos neste momento no mundo – afinal, políticos isentos não recebem os apoios imprescindíveis para se eleger e “operar” o jogo político.

Algumas dessas empresas são maiores do que os países em que operam.

As maiores companhias de alimentação do mundo (clique na imagem para ver maior)
As maiores companhias de alimentação do mundo (clique na imagem para ver maior)

Da mesma forma, quando se fala em transparência nas contas das empresas de transporte público, que efetivamente soam cada vez mais como uma efetiva máfia, lembramos que as campanhas municipais são claramente dominadas por empreiteiras e pelas companhias de lixo e de transporte.

Mesmo nesse nível local, fica claro que o político necessariamente herda uma estrutura viciada de jogos de interesses, de forma que nem que fosse um santo em termos éticos ele conseguiria evitar “o jogo dos ratos”.

E, é claro, nunca um santo em termos éticos seria convidado a ser patrocinado e ganhar seu posto de visibilidade, destituído de isenção, ou real poder perante os grandes interesses.

Então não há efetivo descompasso entre uma marcha “contra a corrupção” e uma manifestação contra um aumento de tarifa, ou pela humanização do espaço público. Apenas que, se ocorrer uma reforma política, ela deveria visar, em primeiro lugar, desenlear os vastos interesses. E, de fato, a legislação deveria impedir a formação desses verdadeiros buracos negros de interesse, que distorcem toda a estrutura política ao seu redor.

A metáfora não é vazia: assim como a quantidade de massa numa estrela a torna um atrator gravitacional tão irresistível que nem a luz escapa, da mesma forma a concentração de dinheiro e influência das transnacionais não permite, no bojo de sua esfera de influência, que hoje é o mundo todo, uma efetiva representação da vontade pública.

O curioso é que a maioria dos que levantam a bandeira contra a corrupção não parece reconhecer que os grupos de interesse montam os governos e campanhas, manipulando há décadas todos os poderes, e em particular o legislativo. E não só no Brasil. Culpamos pessoas e partidos, mas seguimos ufanistas das marcas de nossos carros ou gadgets, ingerindo substâncias processadas com aparência de comida, vestindo e exibindo nossa vaidade ideológica – e não parece haver muita alternativa, claro, porque a visão de mundo dada não apresenta alternativa.

No caso das máfias locais, seguimos achando que o prefeito é mais do que um capataz de segunda classe das empresas de ônibus, de lixo e das empreiteiras. Mas foi colocado lá exatamente para levar nossos socos e pontapés vãos: é para isso que foi contratado.

Por isso não creio que as manifestações no Brasil sejam especificamente brasileiras. Elas o são na medida dos 20 centavos, mas elas são, antes de tudo, o prosseguimento do movimento Occupy. E estão claramente vinculadas a várias outras conturbações recentes pelo mundo todo. Aqui, é claro, encontraram uma vasta população também preocupada com questões pequenas e brasileiras, como a PEC 37, Renan Calheiros e a ideia da “corrupção” como um deslize moral.

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Sim, eu disse pequenas e brasileiras.

Eu não disse irreais ou fúteis: são reais e justas. Porém, o próprio foco no governo, nos governantes, nas instituições, e assim por diante, é, se examinamos cuidadosamente, relativamente fútil. A corrupção dos governos, que ocorre às margens da lei e também de forma “perfeitamente legal”, não é brasileira: é generalizada. Aqui ela é um pouco mais desavergonhada, e por isso, bem mais explícita, apenas.

A corrupção surge pelo próprio desenho das estruturas políticas, submetidas ao estresse da grande desigualdade de forças em jogo: irrelevantes pessoas “comuns”, algumas instituições que possuem um poder relativo, e, únicos players realmente importantes, os buracos negros corporativos de poder absolutista.

Em Porto Alegre, em 5 de outubro de 2012, um Tatu inflado de Plástico de 5 metros de altura, patrocinado pela Coca-Cola e representando o mascote da Copa, foi furado e queimado por manifestantes pela não privatização dos espaços públicos. Já havia algumas outras manifestações anteriores, mas traço nesse evento o começo desse processo atual no Brasil.

Foi algo muito controverso, visto como ato de vandalismo e não de protesto, e foi um dos primeiros indícios claros da insatisfação com o financiamento público dos eventos esportivos.

A insatisfação foi até direcionada contra o prefeito de Porto Alegre, por sua associação e submissão para com a iniciativa privada. Não quer dizer que não seja um escroque (disso não sei), mas é com certeza algo menos do que isso – é, como todos os outros representantes, apenas um fantoche desses interesses.

O interesse público só é representado na medida e ocasião em que ele não afeta o interesse das corporações: mais do que isso, não são pessoas poderosas que estão no comando verdadeiro dessas empresas, são algoritmos contratuais – determinações legais que afetam dinamicamente qualquer autodeterminação que uma das partes humanas poderia ter – como um programa de computador rodando legislação por cima das vontades humanas, até as dos participantes.

Se fossem apenas pessoas, seria muito mais fácil. As “pessoas más” que construíram as legislações que permitiram e incentivaram esse algoritmo já morreram todas, mas o algoritmo segue rodando.

Agora, ironicamente, somos todos vítimas – da mesma forma que na rua somos todos vítimas do engarrafamento causado pelo lobby das empresas automotivas, que explora nossa consciência e os valores de autodeterminação e liberdade pessoal nos vendendo um posto atrás do volante.

Problema político apenas?
Problema político apenas?

Não muito diferente das empresas de cigarro. E não são nem mesmo pessoas que querem ganhar dinheiro com o sofrimento dos outros: é apenas um jogo de engrenagens que segue operando de forma cega. Não é possível nem mesmo ter ódio de algo em específico, e é por isso que o ódio é dissipado em qualquer coisa – uma violência aleatória que alarma a todos e que, por outro lado, conclama a todos a não ficar parados.

Algumas vezes se pensa que corporações, como a Coca-Cola, são formadas por pessoas, talvez pessoas más e gananciosas que querem me engordar em várias parcelas de alguns reais, me fazendo comprar água suja. Mas elas não são formadas por pessoas num sentido importante, embora tenham acionistas e CEOs que, em certo sentido, são seres humanos com alguma consciência. Elas são formadas principalmente por diretrizes e legislações que moldam as ações dos humanos que delas participam.

O que une esses elementos humanos relativamente desimportantes são os algoritmos contratuais, aos quais todos os participantes estão atados, e sob os quais nem mesmo podem tomar decisões que prejudiquem a companhia naquele ano fiscal. Ainda que isso causasse, imediatamente, algo como a destruição do mundo, por exemplo, isso teria, por necessidade, de ser visto como uma mera externalidade.

Ainda vivemos sob a ilusão, fomentada por eventos esportivos e pela imprensa, de que países e governos sejam relevantes.

Estes espetáculos e o teatro do governo são, porém, orquestrados pelos interesses de algoritmos frios. Aqui cabe dizer que essa não é ou não precisa ser uma crítica ao capitalismo de forma geral: há uma clara diferença entre uma vendinha familiar de bairro ou um supermercado Walmart, entre um boteco e o McDonald’s. Embora seja indecente a concentração de renda em termos de indivíduos, ela é um problema irrisório perto da concentração de influências das grandes corporações.

Precisamos, esquerda e direita, convir que as grandes concentrações de poder e dinheiro em contratos que criam uma “pessoa” sem consciência não são benéficos para ninguém – não é benéfico para o próprio capitalismo.

Uma solução clara seria, e já levantada pelo movimento Occupy, por exemplo, uma legislação permitir algum grau de accountability, como responsáveis legais humanos pelas ações da corporação. Só isso já evitaria muitos problemas. Neste momento, a “pessoa” responsável é um contrato, que não vai para a cadeia, e a quem multas (em geral irrisórias) não “doem”.

Link YouTube | Trailer do bom documentário "The Corporation"

E assim a corporação segue, como a engrenagem cega e avassaladora que é, consumindo o planeta e submetendo os seres humanos a todo tipo de pressão, como por exemplo viver como sardinhas em bolhas de lata por várias horas por dia, na direção do ganha-pão nos funis viários, comendo lixo em embalagens coloridas, e enchendo nossa mente de publicidade e entretenimento vazio – que cultivam exatamente um mundo e aspirações onde o consumo faz mais sentido do que qualquer outra coisa.

O nosso governo de “esquerda” e nossa imprensa não nos martelam incessantemente a necessidade de elevarmos nossos índices de crescimento econômico? E como esse crescimento é promovido, senão pelo consumo? E consumo do quê principalmente?

Carros.

Quando presos no trânsito teríamos tempo para meditar sobre o porquê de ser assim. Será mesmo que precisamos de mais infraestrutura para carros particulares? Ou será que já é hora de incentivar o transporte coletivo?

Não é pelos 20 centavos, mas pela reconquista do espaço pelos seres humanos. Não o espaço sideral, o espaço das ruas. A ideologia do consumo propagada por algoritmos sem coração, e Moloch a que alguns humanos desavizados se prostram, nos tortura a todos com ar ruim, artérias urbanas entupidas e corpos e mentes torturados e entorpecidos. E você ainda espera por um apocalipse zumbi?

E o que se apresenta como tensão opositora? As redes sociais, uma forma de consciência coletiva que ninguém ainda entende direito, orquestram em resposta outro espetáculo: as manifestações. Entre a organização popular e a venda de muitas máscaras de Guy Fawkes e bandeiras do Brasil, esperamos a próxima estratégia das corporações, protegendo os ganhos através de seus processos automatizados, já que os algoritmos eternamente famintos de lucros impedem qualquer consciência.

Ironicamente, as redes sociais são também corporações. Pode ser que estejamos em meio a um duelo de Titãs, e pode também ser que, se soubermos aproveitar bem, possamos usar isso como uma brecha para reconhecermos e dissiparmos o poder desses monstros todos.

Assim, em contraponto, muito além do possível acirramento da violência e do caos urbano, está a luta pela manutenção da consciência livre e engajada. E isso não envolve exatamente uma crítica desenfreada ao capitalismo, mas pelo menos aos fatores do capitalismo que, a olhos vistos, sairam de controle e impedem a chegada e manutenção de qualquer ética no setor público, e que, enfim, impedem qualquer representação da vontade pública.

Essa questão é viva nas mentes de muitos, e isso evidentemente está por trás de todos os grandes problemas do Brasil e do mundo. E, mais do que isso, esse conceito da “pessoa corporativa”, que permite que algoritmos sem consciência operem acima da vontade de todos os participantes humanos, dentro e fora das empresas, não é necessária – nem para o capitalismo, nem para o funcionamento das empresas. Que o curinga dos interesses extremamente concentrados não seja ignorado.

Por todo lado ele deveria ser claramente o alvo principal.


publicado em 25 de Junho de 2013, 22:05
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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