A necessidade de ser especial

Assim que cheguei de mais um treinamento de Taketina, me disseram que teríamos de fazer um publieditorial para divulgar o novo Citroën C4.

Vendo o vídeo da campanha, não pensei no carro, não pensei em produzir algum conteúdo relacionado para o PapodeHomem, não surgiu nada além da persistente necessidade de nos sentirmos especiais. E é sobre isso que falo agora.

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Uma massa de seres especiais

A tentativa de se tornar especial é justamente aquilo que nos iguala à massa. Basta observar as pessoas em seus longos rituais de faculdade, emprego, casamento... Fora, buscamos algo exclusivo, VIP, premium. Dentro, tentamos cultivar algum diferencial, alguma habilidade única, encontrar nosso dom, talento, algo verdadeiramente nosso, único, pessoal.

E quando enfim conseguimos, encontramos milhares de outros. Idênticos, nada especiais. Igualmente cansados e insatisfeitos.

Há uma espécie de ingenuidade que nos cega ao fato de que não há nenhuma emoção, pensamento, ideia, ação, história que nos aconteça e não possa igualmente surgir em outro corpo, outra mente, outro ser. Dormimos agarrados aos nossos dramas pessoais e aos nossos sonhos como se eles nos definissem...

Ironicamente, quanto mais ignoramos nossa total ausência de originalidade, quanto mais tentamos ser especiais, maior nossa artificialidade. Terminamos nos sentindo sem identidade, como se estivéssemos em uma vida que não é nossa, e com ainda mais ânsia por algo que nos torne únicos e especiais.

Como fazer uma mulher se sentir especial

Sites sobre relacionamento estão cheios de listas do tipo "Como fazer uma mulher se sentir especial". Há até um passo a passo no WikiHow. Se alguém tiver coragem de segui-lo com todo o romantismo, encontrará uma dimensão de ceticismo até na mais entregue das mulheres. Ora, ela sabe que não é especial. Por trás de nossas mil identidades e autoenganos, todos nós temos essa certeza. Se vem alguém dizendo o contrário, podemos sorrir e gostar, mas algo em nós sabe que estamos sendo enganados.

Nossas tentativas de fazer o outro se sentir especial criam uma base superficial para o relacionamento. É como se o outro soubesse que não está sendo verdadeiramente olhado. De fato, tentamos fazer do outro alguém especial apenas para ter a sensação de ser amado e desejado por alguém especial. Dependemos de outro par de olhos para nos sentirmos insubstituíveis. "Você é insubstituível" significa "Eu quero ser insubstituível para você".

A prova? Quando somos substituídos, quando deixamos de ser a pessoa especial, imediatamente paramos de vê-la como especial. Ou pior: nos ajoelhamos pedindo para que ela volte a nos ver do jeito que nós não conseguimos parar de vê-la.

O problema da primeira pessoa

Você também descreve a chuva como se ela caísse apenas em cima de você?

Vivemos excessivamente em primeira pessoa. Mesmo quando usamos segunda ou terceira pessoa, estamos sempre tomando o "eu" como referencial. A necessidade narcísica de ser especial sequer existiria sem tanto autocentramento, sem encarar todas as experiências tendo o umbigo como perspectiva.

Hoje mesmo, assim que saí de casa, um carro passou desacelerando e buzinou. De impulso me surgiu o pensamento "Algum amigo me viu". Quando olhei para descobrir quem era, percebi que o cara buzinou porque um outro carro saiu com tudo da garagem e quase bateu. Outro exemplo, narrado por Alex Castro, é o homem que interpreta as ações da vizinha na varanda como se fossem alguma espécie de flerte, como se fossem recados, sinais para ele.

É exatamente a mesma dinâmica que nos faz sofrer quando nossa mulher fica com outro homem. Por que raios achamos que isso aconteceu porque nós fizemos ou não fizemos algo específico? Não seria mais inteligente (e muito menos doloroso) aceitar que nasceu outra relação sem nada a ver conosco?

Prazer de ninguém

Nossa mente não precisa sempre nos tomar como referencial. Podemos sustentar diferentes perspectivas – a vantagem é que apenas uma será autocentrada. Se assim não fosse, sequer existiriam as palavras "empatia" ou "compaixão". Isso não significa matar o ego ou apenas entender que você é um outro como qualquer outro. Em vez de nos diminuir, podemos crescer, avançar. Podemos começar a nos deliciar com o prazer de viver na terra de ninguém. Descobrir o que em nós e nos outros não é pessoal.

Reinhard Flatischler, mestre do ritmo, costuma dizer: "I drum, it grooves". É o mesmo que dizer: "Eu te beijo, o prazer surge". Ninguém dá prazer para ninguém. O prazer surge. Não apenas prazer sexual, mas toda a riqueza das relações e até mesmo nossos projetos profissionais não são pessoais ou feitos por nós. Não acontecem dentro, mas entre. Mais do que objetos ou sujeitos, são espaços. Terra de ninguém.

Isso que seduz uma mulher, que faz surgir prazer no sexo, que faz bebês nascerem, isso é a mesma coisa que movimenta nossos pulmões sem que tenhamos de colocar mais um item na to-do list. Isso é a mesma coisa que eventualmente nos matará. Uma relação constante, curiosa e direta com isso naturalmente nos libera da necessidade de ser especial, pois se há algo de valioso e especial em nós é justamente isso.

Rueda de casino, um dos melhores exemplos para entender como podemos ser feliz em um ambiente em que ninguém é especial

O reconhecimento honesto de que não somos nada especiais abre caminho para realmente nos sentirmos satisfeitos, em casa em nosso corpo, no local onde estamos, no tempo em que estamos. Sem tanta auto-importância e seriedade, nossa presença se torna flexível o bastante para tocar uma outra pessoa. Contardo Calligaris descreve assim o objetivo do processo terapêutico:

"Seria a experiência de que não somos grande coisa e, em particular, não somos a única coisa que falta para que o mundo seja perfeito e para que a nossa mãe seja feliz. Isso parece (e é) uma coisa fácil de saber e mesmo de admitir, mas uma experiência efetiva dessa superfluidade de nossa existência é uma outra história. Nesse momento final, o sujeito vivenciaria, logicamente, uma espécie de desamparo depressivo, mas também uma extrema liberação.
Por que liberação? Pois é, o que mais nos faz sofrer talvez seja justamente a relevância excessiva que atribuímos à nossa presença no mundo, pois essa relevância é a pedra de fundação de todas nossas obstinadas repetições, é graças a ela que insistimos em ser sempre “iguais a nós mesmos” (sendo que, no caso, essa expressão não tem um sentido positivo)."
–Contardo Calligaris, em "Cartas a um Jovem Terapeuta"

Quando abdicamos da necessidade de ser especial, quando afrouxamos o autocentramento, temos uma experiência parecida à do fim do comercial que gerou esse texto. Não porque somos desejados, não porque as mulheres (ou homens, no cenário inverso) não tem outra opção e só tem olhos para nós, mas porque finalmente vemos os outros e então somos enfim vistos. Afinal, a constante encenação e tentativa de ser alguém impedia os outros de nos verem e de se relacionarem diretamente conosco.

Para vermos uma outra pessoa, é preciso dar um passeio fora de nossa cabeça. E nessa terra de ninguém a pergunta "Sou especial?" nunca existiu.

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P.S.: Tiro meu chapéu para a Citroën por ter topado apoiar uma reflexão como essa em vez de exigir um conteúdo vinculado diretamente ao carro. Trabalhamos diariamente com isso e sabemos que é uma atitude rara.

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Para quem está cansado de apenas ler, entender e compartilhar sabedorias que não sabemos como praticar, criamos o lugar: um espaço online para pessoas dispostas a fazer o trabalho (diário, paciente e às vezes sujo) da transformação.

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publicado em 28 de Abril de 2011, 12:53
Gustavo gitti julho 2015 200

Gustavo Gitti

Professor de TaKeTiNa, colunista da revista Vida Simples, autor do antigo Não2Não1 e coordenador do lugar. Interessado na transformação pelo ritmo e pelo silêncio. No Twitter, no Instagram e no Facebook. Seu site: www.gustavogitti.com


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