A relação cintura/quadril e nossa noção de estética sobre a de saúde

Foi na época de faculdade que pude exercer saudavelmente minha paixão por órgãos, sangue, músculos e ossos.

Nas aulas de anatomia, troquei os documentários da série Faces da Morte por efetivas horas dedicadas a sanar todas as minhas curiosidades. Lidar com o corpo naquela fragilidade e com a morte sempre presente nos aguça um respeito diferente pela carne e pelo cadáver, belamente mencionado pela "Oração ao Cadáver Desconhecido":


“O curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te de que este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que, em seu seio, o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que, por ele, se tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe, mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir  a humanidade que por ele passou indiferente.


-- Karl Rokitansky (médico patologista austríaco), 1876.


De todos os interesses que aquelas aguardadas horas semanais proporcionaram, poucos me marcaram mais do que estar em contato com as camadas e camadas de gordura abdominal, suas cores, tamanhos e texturas; era notório que o excesso destoava de um todo equilibrado.

Nosso espelho, nossos médicos, treinadores e nutricionistas têm um quase-mantra em comum, difícil de ignorar e sofrido de conseguir.


Cuide de sua circunferência abdominal.


Nossos hábitos e comportamentos fazem às vezes de tatuagens, como a cor de um pulmão fumante, um fígado com cirrose, um excesso de gordura e, também, um corpo saudável e alcoolizado, vítima de algum estúpido acidente de carro. Naquela sala tão iluminada, levamos constantes voadoras de realidade, do quão suscetível é o nosso corpo.

As coisas que vi nas aulas de anatomia foram explicadas pela fisiologia. Nosso padrão de distribuição de gordura corporal é tão ou mais importante do que a quantidade de gordura corporal total, pois as células do tecido adiposo apresentam diferenças metabólicas e fisiológicas de acordo com o local que se encontram. A gordura do bumbum, por exemplo, é diferente, mais saudável e -- dizem por ai -- mais bonita do que a gordura da barriga.

Já essa, também conhecida como gordura visceral, é mais sensível ao hormônio do estresse, o cortisol. Dessa forma, quando estamos sob situações de muita ansiedade (que nos reduz horas de sono e a motivação às atividades físicas), qualquer caloria a mais que consumimos provavelmente se destinará em torno da cintura.

No caso, o excesso de gordura nessa região (obesidade andróide/ obesidade central) está fortemente associado a inúmeras complicações metabólicas, como doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, diabetes, aumento nos lipídeos plasmáticos, doenças da vesícula biliar, câncer entre outras.

Uma pessoa considerada forte e outra chamada de "gordinha" podem ter o mesmíssimo IMC
Uma pessoa considerada forte e outra chamada de "gordinha" podem ter o mesmíssimo IMC

Todos já fizemos o conhecido cálculo de Massa Corporal, o IMC: peso corporal expresso em Kg e dividido pelo quadrado da estatura em m². De uma maneira geral e com poucas variações, advoga-se que, em ambos os sexos, os valores desejados são de 19 a 25 Kg/m². Um IMC acima desses valores reflete situação de sobrepeso e, acima de 30, está quase sempre associado à quantidade excessiva de gordura (níveis de obesidade), exceto atletas de alto rendimento de algumas invejáveis modalidades esportivas.

Pois bem, sobrepeso e obesidade não são sinônimos.

No caso do sobrepeso, refere-se ao aumento excessivo do peso corporal total, que pode ocorrer com modificações de apenas um de seus constituintes (gordura, músculo, osso e água) ou em seu conjunto. Já a obesidade refere-se especialmente ao aumento na quantidade generalizada ou localizada de gordura em relação ao peso corporal associado a elevados riscos para a saúde.

Para avaliar a real composição corporal, existem recursos bem precisos, mas geralmente caros e limitantes em sua aplicação, o que destaca a utilização de recursos mais simples, como a Antropometria, que apresentam resultados muito positivos e de fácil acesso.

Um método antropométrico para análise da composição corporal, passível de ser realizado por todos, consiste nas medidas de circunferências em regiões específicas do corpo. A relação entre circunferência de cintura e de quadril (RCQ) é utilizada para caracterizar se a gordura corporal é reunida predominantemente nas regiões central ou periférica do corpo. Quanto à interpretação dos resultados, ao dividir a medida da cintura pela do quadril, uma relação RCQ maior que 0,90 nos homens e 0,80 nas mulheres sugere acentuada tendência centrípeta da adiposidade, o que pode aumentar os riscos à saúde.

Cintura e quadril em harmonia, saúde em dia e até a estética acaba, consequentemente, se beneficiando
Cintura e quadril em harmonia, saúde em dia e até a estética acaba, consequentemente, se beneficiando

Ouvimos tantas mediocridades sobre nossos hábitos e condutas para um corpo apenas bonito que nos esquecemos de prestar atenção aos detalhes importantes, como nossa nutrição, padrões de sono e exercícios estão afetando nosso corpo, peso, composição corporal e, por fim, nossa distribuição de gordura corporal.

Temos que fazer uma avaliação auto-referenciada de nossa competência física, nos orientando quanto às melhoras em relação aos nossos desempenhos anteriores.  Se eu comparar a minha “barriga” com um “abdômen” célebre, não terei apenas um padrão complicado de distribuição de gordura corporal, mas também certa ansiedade, desmotivação entre outras mazelas temperadas pelo cortisol.

Não enalteço a importância de um abdômen definido, com gomos passíveis de contabilidade. Não. Destaco uma medida que corrobore com uma composição corporal adequada e saudável e, para isso, controlar nosso peso corporal por meio do IMC e a gordura corporal com o cálculo da RCQ, é uma forma simples e possível.

Temos uma indústria da “saúde” que nos contamina com o estético em detrimento do saudável. Temos como exemplos os recortes de pesquisas que “concluem” que homens se atraem imperceptivelmente pela relação cintura e quadril do corpo feminino, com o intuito de encontrar uma parceira saudável e fértil; e no caso das mulheres, a relação cintura e tronco masculino em prol de um homem forte, e protetor.

Quando esse tipo de informação é divulgada por revistas nada científicas, são vendidas também conclusões reducionistas e uma visão estritamente cissexual, que partem do princípio que todas as pessoas são e exercem o que se espera de seus gêneros e de padrões de beleza.

Posso chegar ao meu IMC mínimo considerado saudável e, mesmo assim, minha estrutura óssea ser maior do que os 60 cm de cintura que se propaga como sexy. Se não tenho, então, quadris largos e uma cintura fina? Posso denunciá-los como causadores de minhas infelicidades? Não. Tenho experiências tão positivas e negativas quanto à Shakira.

Não merecemos impropérios fisiológicos. São inúmeras as justificativas e fins para nossos quadris e barriguinhas estarem do jeito que estão. Mas tem um momento sutil, que às vezes nos acomete e nos percebemos pouco confortáveis com nossos corpos, e dói.

Pode ser resultado de algum exame clínico, avaliações físicas da academia, ou mesmo o espelho nosso de cada dia. Nesse momento, só uma força de vontade bem grande para mudar o cenário e tomarmos alguma iniciativa para diminuir qualquer proeminência.

Em movimento, correndo, dançando, jogando, nos percebemos tão deliciosamente competentes fisicamente que qualquer relação cintura/quadril é um bônus, consequência e, com o tempo, pouco importante. E para tirar a bunda da cadeira, perceba qual movimento você faz primeiro, uma irônica contração abdominal dizendo a você que, por baixo dessas camadinhas de gordura, tem todos esses músculos.

E eles querem movimento.


publicado em 03 de Julho de 2014, 21:00
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Débora Navarro Rocha

Educadora Física, mestre em Exercício Físico e Saúde para Populações Especiais. Atualmente é Docente do Instituto Federal do Paraná.


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