Como seria sua vida após o fim do mundo? - Parte 2

Chamamos um engenheiro amante da Ciência para pensar o que aconteceria se você sobrevivesse ao apolicapse.

Se perdeu, leia antes a primeira parte.

Você tem uma fruteira em casa?

"Ah, mas ainda restam as frutas!"

Ao que eu pergunto: quem é o índio que ainda come frutas? Tudo bem, algumas pessoas realmente ingerem alimentos não fritos. Mas, se você leitor for uma dessas pessoas, você tem uma fruteira em casa?

E não me refiro ao móvel com rodinhas onde bananas de supermercado são deixadas até apodrecer nem ao receptáculo semiesferóide que fica sobre a mesa cheio de peças disformes de cera pintada, mas a árvores de onde nascem frutas. Tem uma dessas na sua casa? Se você mora num apartamento, eu sei que não tem (bonsai não conta).

Trailer de "2012" | Como seria sua vida num mundo depois de algo assim?

Vou conceder (fantasiosamente) que exista um pé-de-X no seu quintal. Com qual frequência você pode colher Xs maduros durante o ano? E qual a quantidade absoluta de Xs maduros que sua árvore produz por dia? E por quanto tempo você aguentaria comer nada além de Xs?

Ah, mas seu terreno é grande e tem um pé-de-Y também! Ótimo, agora você pode alternar Xs e Ys até abusar dos dois ou até passar a época da floração, o que vier primeiro!

Eu estou propositalmente deixando de citar as de supermercado, pois qual motorista de caminhão vai gastar o restinho da sua preciosa gasolina indo buscar e deixar frutas ao redor do país? Porque a região onde dá jabuticaba não é a mesma onde nasce mamão. Ademais, sem energia não há adutoras nem irrigação agressiva e voltamos ao tempo das cavernas, quando precisávamos esperar até março para comer pitombas e jambos só davam entre outubro e novembro.

Nesse ponto, o pico inicial de desespero já voltou ao nível normal de constante pessimismo e falta de perspectiva e o episódio de assar o cachorro com as cadeiras da sala já volta a parecer um ato bárbaro e não mais um momento "ou ele, ou eu" de necessidade, causado pela visão anuviada pela fome e as alucinações causadas pela falta de banho e rádio.

Se você precisar, sabe arranjar comida? E com "arranjar" não estou fazendo referência a roubar, mas a produzir comida a partir de, bom, a partir de seja lá o que produz comida.

E todos os dias, para o resto da sua vida, pois sem eletricidade não há refrigeração e a conservação desse alimento produzido diariamente será grandemente prejudicada.

Mas pelo menos você estaria comendo alimentos frescos todos os dias.

Água potável e Google...

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O Google não ajuda muito. Veja os resultados dessa busca...

E quanto à água? Pois ela acabou alguns parágrafos acima e já se passaram alguns meses na linha do tempo deste texto.

Já descobriu como obter água potável ou morreu junto com o cachorro do churrasco? Falando nisso, se sua casa pegar fogo, você sabe usar um extintor? Tem certeza? Uma coisa básica, fácil e intuitiva como tirar um lacre, puxar um pino e espremer uma válvula é um conceito totalmente alienígena para algumas pessoas (constatei isso pessoalmente no Dia do Grande Esguicho, como ficou conhecido no meu prédio o dia em que alguns vândalos esvaziaram alguns extintores nos corredores, não sem muita dificuldade).

Imagino o quão difícil seria tarefas mais complexas, como destilar água ou acender uma fogueira – que, em caso de perda de controle, consumiria todo um quarteirão antes de alguns indivíduos conseguirem entender que a mangueira de um extintor é flexível e precisa estar apontando para a base da chama.

Recentemente eu fiquei 24 horas sem Internet e sofri bastante. Passei pelo menos dezoito dessas vinte e quatro sentado defronte ao monitor, esperando algo acontecer. Planejava apenas ler meus emails e ir lavar a louça, mas enquanto a rede não retornava, minha mente também não funcionava. É como se minha casa só existisse virtualmente e, sem conexão, não posso varrer a sala e limpar o banheiro.

Não é péssimo quando perdemos algo com o qual nos acostumamos? A Internet só tem uns dez anos, a Web 2.0 uns três ou quatro, mas quem conseguiria, voluntariamente, deixar de usar Gmail, Twitter, MSN, Orkut, Facebook? O mundo funcionou perfeitamente bem durante décadas sem um telefone em cada bolso, mas imagine passar uma semana sem celular.

Imagine agora que não há mais veículos motorizados e você tem que ir numa bicicleta (ou pior, caminhando) para onde quer que seja o local onde você recolhe sua comida/água. Qual a melhor estratégia a adotar quando seu lar e sua fonte de alimentação não habitam o mesmo fuso horário?

E não estou falando de quinze graus de curvatura geóide, porque isso para quem está a pé é como daqui até Marte. Refiro-me à distância que, sob certas circunstâncias, deixa de ser contada em passos ou quilômetros e passa a ser medida em horas ou luas.

Boa sorte voltando para casa no mesmo dia em que saiu para catar comida.

Trailer de "Ensaio sobre a cegueira" | Eles ainda tinham comida e energia, mas mesmo assim quase se mataram.

Voltando à estratégia, é melhor "caramujar" (levar sua casa consigo) ou "fidipedesar" (correr 42 quilômetros indo e 42 voltando)?

No caso de um apocalipse tecnológico, além de passar o dia chorando com saudades do meu GReader, eu acho que não me importaria em dormir no mato de vez em quando, desde que estivesse sempre perto de uma fonte de água bebível e comida abundante. Mas como saber se aquele líquido pode ser consumido seguramente? O método ideal envolve transformá-lo em cerveja, mas nem sempre isso é possível (ou desejável, lembre-se que não existem mais geladeiras). Então, como fazer?

Sem tecnologia, eu não sei. E nesse mundo pós-apocalíptico não posso usar o Google para descobrir. Poderia usá-lo agora e decorar a informação, mas isso dá muito trabalho e eu posso fazer mais tarde.

Chegando nos finalmentes: estamos sem energia, sem água tratada corrente, sem alimentos e sem perspectiva de melhorar.

"Sem perspectiva? Mas o espírito humano é inquebrantável, caro amigo!"

Concordo. O otimismo é a doença mental mais difundida no mundo, beirando proporções pandêmicas, mas pensamento positivo não vai trazer o Viva a Noite de volta.

Especialistas que não sabem fazer nada

Vivemos num mundo quase 100% especializado, onde cada indivíduo é exatamente isso: individual e especialista.

Eu, por exemplo, sou formado em Engenharia de Áudio com especialização em Gravação e Edição. Sem um computador possante, sou tão firme quanto um prego na areia e apenas estou fazendo peso na Terra.

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Cena impossível depois do fim do mundo

Se você for um biólogo pode até entender bastante do mundo natural, mas eu aposto que sua função atual se resume a um laboratório cheio de coisas com nomes contendo o sufixo "eletrônico". E se trabalhar num escritório (como eu atualmente) é certeza que depende totalmente de um computador, que depende de eletricidade. Se esta acabar, você está na rua, sem função.

Se for advogado você ainda pode manter seu trabalho temporariamente (até o mundo abraçar a anarquia generalizada com as pernas), mas imagine preparar uma peça com uma caneta. E se precisar copiar um processo?

Neste nosso mundo ocidental refinadamente tecnológico temos todo o conforto do mundo, desde que elétrons corram livres por fios de cobre, para lá e para cá, sessenta vezes por segundo. Acabou energia, acabou civilização. Todos correremos loucos pelas ruas, destruindo tudo que for inteiro e ateando fogo a tudo que for inflamável, até morrermos de sede.

Se perdermos nosso estilo de vida, nunca mais o teremos de volta, pois não existem mais (ou se existem são extintamente escassos) inventores alquimistas renascentistas que sabem, em casa, transformar areia em tecnologia.

Se alguém quiser construir um carro, jamais o fará sozinho. Mesmo depois de extrair e purificar minério, derreter e preparar metal, desenvolver e montar peças móveis e fixas, preparar e executar um plano e, finalmente, construir um carro, ainda é necessário produzir combustível, óleos, sistemas hidráulicos e vulcanização de borracha – que precisará ser extraída por você.

Mesmo se tivesse energia, ninguém saberia como montar um computador do zero. Se você ainda trabalhasse com isso, é provável que soubesse fazer uma placa mãe, mas não um processador ou um monitor.

Sem nossas máquinas automatizadas, fazer um parafuso que seja é a coisa mais difícil do mundo! Imagine um eixo de roda verdadeiramente reto.

Viveríamos em caos total, pois sem máquinas somos inúteis e sem tecnologia somos muito frágeis. Não teríamos a mínima chance. Morreríamos à míngua, totalmente desamparados.

Enquanto isso, Pascoal e Zefinha, que moram perto de um poço artesiano, continuam suas vidas normais de pescador (obtendo a própria comida) e dona-de-casa (remendando as próprias roupas), assando castanhas uma vez ao ano.


publicado em 28 de Dezembro de 2009, 04:01
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Igor Santos

Igor Santos é apaixonado por Ciências, cético, engenheiro, músico e natalense. Mantém o blog "42.", do\r\nScienceBlogs Brasil, enquanto tenta narrar o fim dos tempos no "Agora o mundo acaba!".


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