Desventura

Naquela madrugada quente, os dois caminhavam a passos ligeiros, quase afobados. Benê trazia no saco a viola e Jurandir sentia nas mãos o suor de nervosismo. Este último estava prestes a fazer uma serenata para a mulher que sempre amou em segredo.

Jurandir apenas não sabia o que cantar. Estava entre "Chega de Saudade" e "Chão de Estrelas", mas não conseguia se decidir.

— Qual você toca bem, Benê? – perguntou, coração em plenos trotes quando ambos pararam diante do sobrado.

— Já disse. Você canta; eu acompanho. Só me garanto mesmo em sertanejo – bocejou o violeiro, já antevendo o inferno que seria acordar na manhã seguinte, plena segunda-feira de expediente. Vendo que o amigo não se decidiria, disse "Chega de saudade" e aprontou os dedos nas cordas do instrumento.

Benê esperou um sinal para começar a dedilhar. O sinal não veio: Jurandir estava absorto no breu que vinha da janela, em contraste com o clarão do luar que explodia na rua de paralelepípedo àquela hora da madrugada. O violeiro olhou-o enviesado. Benê murmurou, sentindo-se pressionado pelo amigo.

— Tá bem. Vamos de "Chão de Estrelas".

As mãos do homem estavam encharcadas, assim como a testa. A gravata apertava-lhe o pescoço; o sapato, os joanetes; os suspensórios, o ombro; a música, o coração.

Três. Dois. Um.

Benê começou a tocar "Chão de Estrelas". Si bemol, lá, ré. Jurandir fechou os olhos com a melodia daquela valsa-canção. Pensou na pequena com quem imaginou um futuro calmo, sobressaltado apenas por noites de amor e pelo choro das crianças a nascerem.

Jurandir soltou a voz.

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Passava da uma e quinze quando se fez luz no quarto de Dorinha. Ficava a janela no alto do sobrado, o que deu à cena os tons exatos de uma verdadeira serenata de tempos passados. Jurandir, agora alumiado pelo quarto da moça, abriu os olhos pela primeira vez; Benê bocejou pela oitava. E deu uma leve desafinada num sol sustenido.

Jurandir cantou como se sua vida dependesse daquilo.

A janela da menina Dorinha manteve-se fechada durante toda a música, mas de longe, por detrás de cortinas finas, Jurandir pôde ver um vulto desbotado a observar a cena. Não dava para ver suas feições, mas ele não se chateou com o fato de Dorinha não ter aberto a janela e aparecido completamente. Era compreensível, afinal: não havia mulher mais tímida que ela. E nem tão pura.

Ao fim de "Chão de Estrelas", Jurandir era outro homem. Seus olhos estavam sorrindo, pois viram o esboço de Dorinha, sua sombra nua do outro lado da janela. A noite seria longa demais para aquele pobre apaixonado, a quem quase todos creditavam menos que o devido. Até mesmo Benê, que certa vez lhe disse que “o melhor é esquecer essa mulher”.

— Tá vendo? E você aí, falando para eu tirar Dorinha da cabeça. Que ela não era mulher para mim – dizia Jurandir no caminho de volta, entrecortando as frases com sorrisos de saciedade. As palavras saíam trôpegas. Era muita emoção.

— Quem me disse isso foi sua irmã, a Manuela. Ela vive dizendo que não há homem à altura de Dorinha – respondeu Benê, num bocejar sem fim.

Um se deliciava em exaltação; o outro amargava o sono adiado. Ambos seguiram o rumo reto de casa naquela madrugada.

Enquanto isso, no quarto da menina, uma mulher nua afastou-se da janela, depois de observar toda a cantoria.

— Volta para a cama, amor. Não quero mais esse negócio de você longe de mim. – disse Dorinha, jogada na cama, nua e satisfeita – Para quem era a serenata?

— Não sei. – respondeu Manuela, dirigindo-se à cama em passos felinos. Beijou Dorinha um beijo de boa-noite, jurou amor eterno, e dormiu sentindo o calor da mulher amada.

Ali, naquele quarto, suas roupas comuns dependuradas pareciam um estranho festival.


publicado em 04 de Setembro de 2011, 07:10
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Rodolfo Viana

É jornalista. Torce para o Marília Atlético Clube. Gosta quando tira a carta “Conquiste 24 territórios à sua escolha, com pelo menos dois exércitos em cada”. Curte tocar Kenny G fazendo sons com a boca. Já fez brotar um pé de feijão de um pote com algodão. Tem 1,75 de miopia. Bebe para passar o tempo. [Twitter | Facebook]


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