Diários de (acidentes de) motocicleta

Não gosto de  motocicletas. Na minha concepção de mundo perfeito, elas não existiriam, consequentemente, motoboys, Harley-Davidsons, double back-flips e mundiais de MotoGP também não. Sempre achei que tem alguma coisa muito errada com elas, as motos. Tenho a impressão que já foram projetadas para cair. Os inventores devem ter criado o triciclo primeiro e então pensado: "não! Precisamos sacanear o mundo de outra forma". Então conceberam uma das maiores desgraças do Século XX: a motocicleta.

Música de perigo no deserto... cê conhece a vibe

Confesso que tenho uma esperança meio palerma de que algum dia alguém acorde, olhe para uma CG Titan e diga: "mas o que foi que fizemos? Isso nunca deveria ter existido, recolham todas e queimem!".

Mas como meu mundo imaginário insiste em não se realizar, levo minha relação com as motos evitando maiores encrencas.

Dia desses estava indo para o trabalho, era uma manhã quente de primavera (espere um pouco: por que é que eu sempre cito a estação do ano em meus textos? Santo Deus, eu moro em Cuiabá, aqui sempre faz um calor infernal, caboclo morre de hipertermia no inverno. Melhor reescrever.) Dia desses estava indo para o trabalho, era uma manhã quente. E por algum motivo, sempre que dirijo para o trabalho, lembro de Truman Burbank, personagem interpretado no cinema por Jim Carrey.

Sem saber que sua vida é um programa de televisão, ele vive num reality show transmitido em tempo real para o mundo inteiro. E por que eu lembro dessa famosa gênese de Andrew Niccol sempre que dirijo para o trabalho? Porque já considerei a hipótese de ser o próprio Sr. Burbank.

Certa vez, ainda na minha pré-adolescência, desconfiava que minha vida era televisionada para outros países, que havia um Christof na Lua e que o enredo era previamente escrito por alguém - voyeurismo puro. Pensava isso porque meus amigos tinham conversas estranhas, falavam que não havia nada além das colinas que emolduravam a minha cidade natal, meu vizinho vivia com uma filmadora na mão, minha mãe sempre comprava a mesma marca de macarrão e a menina que eu gostava sempre dizia que queria ser atriz.

Tudo me levava a crer que aquilo só podia ser uma realidade simulada. Então eu cresci e constatei que eu só era idiota mesmo. Meus amigos eram igualmente idiotas, meu vizinho devia ser algum pervertido, macarrão Dona Benta vivia em promoção e pode-se afirmar que a menina que eu gostava virou, de fato, uma atriz - se é que vocês me entendem.

Mas como ia dizendo, estava eu me dirigindo à mais uma manhã de trabalho quando parei num semáforo na esquina do meu prédio. E não pense você que estou falando de qualquer semáforo, aquele é diferente. É um cruzamento que foi projetado para ter emoção - igual os passeios de bugue nas dunas de Natal. São duas pistas simples, uma de mão única e outra que tem mão dupla de um lado e mão única do outro. Ou seja, depois do cruzamento você deve virar para esquerda para não entrar na contra-mão, uma salada propriamente dita.

"Vai, curintia!"

Para piorar, todas as linhas de ônibus do mundo ocidental passam por ali, obrigando quem espera na pista de mão dupla a dar um bom espaço para o ônibus tangenciar a curva. Quem não sabe disso, ou se esquece desse detalhe, inevitavelmente se fode. Um inferno para os forasteiros e menos dotados de atenção. Mas não para mim, um velho coiote quando o assunto é cruzar a Av. Dom Bosco com a São Sebastião sentido Filinto Müller.

Sinal vermelho, ele sempre fica vermelho para mim, não importa muito o que aconteça - já disse, é um farol especial, acho que temos alguma simbiose, como os nativos de Avatar com aquelas árvores sagradas. Pelo menos eu era o primeiro da fila, macaco velho, deixei um espaço de mais ou menos três carros entre mim e onde deveria estar a faixa para pedestres. Comecei a contar quantos segundos levaria para que o primeiro ônibus surgisse, sempre conto mentalmente quando estou na pole position daquele sinaleiro.

"Hoje ele aparece em 10 segundos", pensei. Olhei fixamente para frente, - vai ser um da Garça Branca, o 405 - Coxipó - Jardim Florianópolis. Não, o 405 já deve ter passado, vai ser o 609, aquele do motorista com cara de Vin Diesel. Franzi levemente o cenho para focar melhor no meu palpite. Seiscentos e nove...  Seiscentos e nove...  Seis... Então minha concentração foi completamente abalada pelo som do escapamento furado de uma motocicleta. Busquei a origem do ruído  estampido no retrovisor e flagrei a motoca ziguezagueando entre os carros logo atrás de mim.

Ela avançava rapidamente até me furtar a posição de honra naquele meu santuário particular. Maldita! Pensei. Ela tinha invadido a minha caverna, como Marla Singer em Clube da Luta. Eu era o inflamado sentido de ódio de Jack.

Então minha atenção se voltou para o local onde o dissoluto condutor parou sua Honda Xr 250 Tornado. Era exatamente na linha inimiga, onde o primeiro ônibus que passasse lhe esmagaria como se fosse um animálculo intestinal - verme, se preferir. Previ a tragédia iminente, dos 10 segundos que eu calculara anteriormente havia sobrado muito pouco. Foi então que surgiu o majestoso emblema da Mercedes-Benz estampado no Modelo Marcopolo, era um legítimo "609 - Parque Cuiabá - Centro".

Meu palpite foi certeiro. Vin Diesel olhou com desdém para o cidadão empoleirado na Tornado, fitou-o e ordenou apenas acenando a cabeça desguarnecida de cabelos: "Vamos, meu filho, volte ou eu te esmago como um animálculo intestinal". No meu camarote, eu me deleitava com o desbarato do meu maior inimigo. A moto e toda a sua insignificância deveria recuar diante daquele trambolho de 10 toneladas conduzido pelo cover de Toretto. Com os dois pés apoiados no asfalto abrasivo o motoqueiro fantasma recolhia-se, o ônibus fazia a curva lentamente, pressionando ainda mais o recuo, quase tocava a sua lateral no pneu dianteiro da moto. Eu, claro, não conseguia disfarçar o meu imenso contentamento diante daquela grande cena de submissão. Eu era a vingança sorridente de Jack.

Ai, cacete

Abruptamente meu sorriso deu lugar à expressão de preocupação quando percebi que a a moto recuava sem muitas intenções de parar. Imediatamente enfiei as duas mãos na buzina, com todas as forças da minha alma, mas era tarde. A Tornado acertou a quina do meu para-choque, fez um barulho feio de algo quebrando. Pensei no farol, na seta, na lataria, no martelinho de ouro, no preço exorbitante de um politriz e na discussão inútil que teria com o motoqueiro sobre quem estava certo.

Enquanto pensava em tudo isso pude ver de relance a expressão de satisfação do motorista do ônibus. Ele também devia idealizar um mundo sem motocicletas.


publicado em 13 de Outubro de 2012, 07:00
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Luciano Marino

Luciano Marino: Publicitário, colecionador de coleções, tenista brucutu e atacante matador no pebolim. Cidadão colidense, planeja fazer check-in em todos os continentes do planeta onde vive. Também consegue entortar colheres com o poder da mente, porque sabe que elas não existem.


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