Direita e esquerda ainda fazem sentido? o sinistrismo inexorável da política | WTF #48

As palavras “esquerda” e “direita” surgiram no discurso político com a Revolução Francesa. Quem apoiava o antigo regime, a monarquia, era de direita -- os revolucionários, de esquerda.

Já aí podemos ficar com um pé atrás com qualquer um dos lados, já que a revolução, como tantas outras, com tão boas intenções, causou muitas mortes terríveis (o começo do uso do termo “terror”) -- e por outro lado os abusos do sistema monárquico eram evidentes. Nenhum dos lados sai incólume ao escrutínio.

Parlamento Francês em 1789, pintura de Auguste Couder
Parlamento Francês em 1789, pintura de Auguste Couder

Embora se possa dizer que até hoje as palavras preservam algo dessa dicotomia primária -- a direita representando a manutenção do status quo, e a esquerda a mudança radical --, elas, com o passar do tempo, ganharam outras dimensões. Modo geral, as pessoas não são de esquerda ou direita: elas tendem à esquerda ou à direita por terem mais crenças e motivações políticas voltadas para um ou outro lado -- um esquerdista ou direitista absolutos não existem na realidade.

É preciso entender que há também certa fluidez espaço-temporal na terminologia.

A direita nos EUA, por várias décadas, defendeu valores de família e religião -- mas ela não começou assim, e o seu futuro também parece seguir na direção natural de não enfatizar tanto estes temas, ainda que permaneçam muito fortes por lá hoje.

Aqui no Brasil entendemos “liberal” (neoliberal, no caso) como alguém que privatiza, é fiscalmente conservador, deseja menos intervenção do estado, etc. E, portanto, a esquerda aqui reconhece isso como direita. Porém, o termo “liberal” é mais usado hoje na língua inglesa para indicar a esquerda, os valores do multiculturalismo, e outros assemelhados, tais como legalização de drogas e direitos de minorias como homossexuais e  imigrantes. A palavra tem um vasto histórico no espectro político, e geralmente está mais à esquerda.

É preciso também frisar que, no discurso coloquial, tanto direita quanto esquerda são muito usadas como simples xingamento. No entanto, qualquer pessoa que entenda o que é política sabe que esta só funciona bem num jogo de tensões, que por sua vez requer duas condições: a existência de diversidade de visões e a disposição para algum grau de diálogo onde se abre mão de certas coisas para obter outras mais importantes ou urgentes.

O problema atual, particularmente nos EUA -- mas como a sociedade é culturalmente cada vez mais global isso também se estende até nós --, é que a direita perdeu a capacidade racional, não tem mais carisma ou fator cool, e não possui qualquer lastro moral. Isso se deve à decadência econômica provocada pela desregulação ao longo de 30 anos e a falência moral de várias guerras caras e mal justificadas.

O fracasso da doutrina do trickle-down (a ideia de que se a economia como um todo enriquece, todo mundo se beneficia, o dinheiro “transborda” dos mais ricos e “escorre” automaticamente para as camadas mais pobres) é mais que evidente, embora essa seja uma entre tantas “ideias zumbi” (a gente acha que já enterrou, com evidências, mas que segue no discurso desavisado).

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O fato é que a desigualdade aumentou mais nos países de economia mais desregulada, por ação da direita, que portanto se tornou profunda e totalmente desacreditada.

Aqui no Brasil qualquer “direita” que tenha se apresentado nas últimas eleições só consegue relevância com dois poréns: prometer manter os programas sociais extremamente efetivos e mundialmente elogiados (mas que violam a ânsia meritocrata de certa parcela da classe média frita por imersão), e atacar moralmente as extremamente carismáticas figuras da esquerda. Isto é, se a direita se assume direita e concorre só com o prospecto médio da direita, não tem nem chance.

Antes se dizia que nossa direita tendia ao centro: nem isso, ela efetivamente é uma esquerda mais moderada, com o único apelo de tentar retirar do poder a posição, odiada fortemente por grande parcela da sociedade, muitas vezes sem muito entendimento do espectro político ou vontade de se designar isso ou aquilo. Chamamos de “direita” porque está um pouco mais a direita da posição, que sem dúvida não é tão esquerda quanto poderia ser.

Isso não quer dizer, porém, que a direita, mundialmente falando, não tenha poder residual, e não fascine uma minoria da população. Ela ainda tem eleitores localizados, e a força econômica do petróleo e armamentos. Mas culturalmente os valores religiosos tradicionais da direita se tornaram coisas de gente que aos poucos simplesmente morre de velho, e a educação e disponibilização de informação cada vez torna mais difícil aquele eleitor sem dinheiro ou poder que compra o sonho vendido pelo 1%.

Aqui no Brasil, a bancada religiosa assusta porque o Facebook a “elege” forte inimiga, chama atenção sobre ela, e nesse processo angaria atenção e votos dos “do contra” e ressentidos para ela. Mas é só uma questão de tempo: as coisas já estão melhores e tendem a melhorar, se falamos em termos de valores liberais e seculares.

Em termos econômicos, então, não tem nem graça.

Ou seja, até faz sentido que um bilionário ou CEO de uma Fortune 500 acredite e promova doutrinas que beneficiam a si ou a sua empresa -- mas o tipo trabalhador, pai de família, sem educação universitária que promove a meritocracia e o conservadorismo fiscal (governo menos inchado), esse existe apenas por um lapso momentâneo da razão, e pela “manufatura de consenso”.

Esse tipo de contradição viva está fadado ao desaparecimento -- embora, claro, o Brasil ainda tenha uma vasta fatia deles, porque justamente a nossa velha classe média, por mais arroxada e verdadeiramente surrada que esteja (o que não é uma boa coisa, preciso frisar, ainda que a classe média emergente seja), ainda guarda valores do antigo regime (o Francês mesmo, da revolução de 1789), com empregados domésticos e senso de superioridade perante a ralé.

E tanto aqui quanto nos EUA haja interesse de parcela velha (e muitas vezes educacionalmente falando, ignorante) da população por coisas como Fox News e Veja. Mas, seguindo e provando meu argumento, TV e revista são mídias do século passado, cada vez mais irrelevantes por sua própria natureza.

Cid Moreira e Hilton Gomes na primeira edição do Jornal Nacional, em 1969
Cid Moreira e Hilton Gomes na primeira edição do Jornal Nacional, em 1969

A direita, para se manter relevante, precisa também lidar com o fato de que seus valores morais familiares já foram pro saco, uma vez que a guerra cultural foi vencida (é só estudar e traçar demográficos e seguir as curva ascendentes nos próximos 20 ou 40 anos). Os valores de tolerância e multiculturalidade da esquerda já venceram. Óbvio: isso não quer dizer que aqui e ali a intolerância não venha a se tornar poderosa -- mas se tivéssemos feito uma pesquisa longitudinal desde a renascença, veríamos tais valores naturalmente progredindo em todas as culturas, e dando verdadeiros saltos com a comunidade global a partir dos anos 60.

O que a direita vende e que ainda cola para algumas pessoas é a força da liberdade individual, e a meritocracia. Mas qualquer discussão sobre meritocracia e liberdade que não se depare com evidências científicas e dificuldades filosóficas é simplesmente pobre. Ora, todo mundo concorda que trabalho duro e poder de escolha são bons valores. O que todo mundo também vê é que apenas trabalho duro não é suficiente, e que é um dever humanitário promover maior igualdade; todo mundo também vê que a liberdade é fácil de vender como ideal, mas que poder escolher entre várias marcas de pasta de dente não é exatamente o que se espera da glória do espírito humano.

Há outras liberdades além do consumo, e ser tratado como e manter uma auto-imagem de consumidor não é exatamente liberdade.

Ironicamente, com a conversão das sociedades totalitárias de esquerda ao capitalismo (mas, em muitos casos, sem a superação do totalitarismo!), se chegou a pensar numa derrota da esquerda, enquanto que o oposto parece ter acontecido. Aqui no Brasil ainda há proponentes da doutrina do “fim da história”, que nenhum acadêmico no mundo leva a sério desde os anos 90, onde ela surgiu e onde, no âmbito esclarecido, ficou.

Com o fim de certo estereótipo comunista, fomentado tanto pelo extremo particular do esquerdismo que se fundou na revolução de 1917 quanto pela propaganda contra esse extremo, a esquerda justamente começou a fazer a justa oposição aos problemas do capitalismo. Aquele que ataca a esquerda prefere o espantalho do totalitarismo soviético -- mas a maior parte da esquerda de todos os tempos reconhece o capitalismo como uma realidade, quase que como uma realidade da natureza humana.

A divisão só ocorre entre o extremo de tentar superá-lo completamente e encontrar uma alternativa (e as tentativas desajeitadas do passado são, justamente, apenas isto, tentativas desajeitadas), ou controlá-lo de alguma forma. Ambos os projetos são esquerda: conviver com o capitalismo ou buscar uma alternativa; e mesmo o marxismo previa uma transição gradual, isto é, mesmo a esquerda um pouco mais utópica, que deseja o fim do capitalismo, entende que será necessário lidar com o capitalismo por algum tempo.

Ora, foi justamente essa a discussão em torno de transformar um país feudal num reino socialista que deixava os esquerdistas mais técnicos de cabelo em pé: mesmo nos planos mais mirabolantes e oitocentistas de Marx o capitalismo bem azeitado era considerado uma etapa essencial – ele precisava funcionar direito, ser estabelecido, para revelar suas contradições.

Um bando de camponeses analfabetos que em quarenta anos passou a construir submarinos e reatores nucleares, e dez anos depois botou gente no espaço? Até que, sob certo aspecto, a URSS “funcionou” -- mas muito surpreendentemente (e claro, à custa de muito sofrimento por parte da população), porque se tratava de um país montado em peças de lego sujas e meio quebradas, por um bando de crianças abusadas e ressentidas, e onde uma classe de burocratas simplesmente tomou o lugar da aristocracia.

Aliás, a Rússia ainda é assim: pré-revolução francesa, com um governo que opera como a máfia -- haja capitalismo, ou não haja.

Vladimir Putin
Vladimir Putin

Porém, se essa gente do esquerdismo técnico nos mil e oitocentos se deparasse com a informação de que o capitalismo poderia rapinar e destruir completamente a terra nesse processo, tornando qualquer futuro absolutamente difícil, talvez as loucas teorias de previsão histórica, e de planejamento utópico, da esquerda fossem outras. Mas o fato é que Marx pode até iluminar certas críticas ao capitalismo, mas a esquerda já está muito à frente de Marx e das utopias teratogênicas que ele inadvertidamente produziu.

A esquerda, hoje, é representada por gente como Russell Brand: jovem, altamente articulada e cool, por mais que um tanto improvisada e, em certos sentidos, superficial. E essa gente sabe que a ênfase do marxismo na visão econômica está datada: para Brand, o problema político é um problema espiritual. O que isso quer dizer? Que falta na política pasteurizada da representação uma visão integral, em que ética e praticidade podem coexistir.

E a política ganha outras ações além do voto e da revolução violenta.

Além disso, a própria direita nem sempre foi contra o controle de certos aspectos do capitalismo. A direita que visa a total liberdade da economia (o anarcocapitalismo, ou certas formas de libertarianismo) é só um estilo da direita que começa a ficar em voga, talvez tão extremo quanto o comunismo soviético foi para a esquerda.

Mas ele será mesmo “direita”?

Quando os valores religiosos e de família são extirpados, o poder do estado é diminuído ao mínimo, o que resta não é esquerda ou direita -- não chega a ser um plano político, mas sim um gozo psicopático com algum tipo de futuro pós-apocalíptico ao estilo de Mad Max, cada um por si e fodam-se os outros. O que é claramente, ainda que infelizmente, uma das alternativas possíveis para o futuro, mesmo sem a intervenção das forças organizadoras da direita e da esquerda, ou de visões mais moderadas de quaisquer tipos.

Ora, Adam Smith era um moralista. Ele acreditava que se todo mundo tivesse agulhas baratas fabricadas em linhas de montagem da revolução industrial, isso beneficiaria a todos. Os maiores pensadores do capitalismo, até o século XX, se preocupavam com o bem estar público e com a desigualdade. Foi só no século XX que a visão abertamente psicopata da ganância se tornou aceitável -- na mesma época em que se reagia contra os monstros da esquerda.

Ainda assim, considerando as questões sociais, ambientais e econômicas, globalmente, em termos de vontade popular, estamos hoje naturalmente tendendo para a esquerda. Cada vez mais e progressivamente, uma tendência que já foi chamada de “sinistrismo”. Excluindo-se os extremos da direita religiosa ignorante, e da não-direita/não-esquerda do anarcocapitalismo extremista, a direita parece ter pouco a dizer, e nenhuma representatividade efetiva, nem naqueles modos extremos.

Ela só está no congresso estadunidense pela terrível distorção que o sistema eleitoral distrital deles promove, bem como pela força do lobby armamentista e do petróleo -- mas nem mesmo as populações sulistas, se houvesse uma reorganização distrital, efetivamente elegeriam republicanos.

Quem ainda se acha de direita, deve se perguntar qual é a função do estado. Se a função do estado não for o bem estar social, tudo bem, você é algum tipo de psicopata, mas pelo menos é coerente. Se considera a função do estado como sendo o bem estar social, e você ainda acredita no trickle-down, leia mais. Se você não acredita, você é de esquerda.

Você e o Russel Brand
Você e o Russel Brand

É claro, se falamos do compasso político, temos dois eixos, que podemos chamar de liberal e conservador, e social e econômico. Se você coloca a economia como um valor maior do que o bem estar social -- basta a prioridade ser essa, independente de suas teorias sobre qual vem primeiro para resolver a outra -- você é de direita. Caso contrário, você é de esquerda.

No outro eixo, se você acredita que os direitos individuais são mais importantes do que os valores coletivos (promovidos pela tradição, pelo governo, pela família), você é liberal. Caso contrário, você é conservador, ou autoritário.

Então podemos ser liberais de esquerda ou direita, e conservadores (autoritários) de direita ou esquerda. Modo geral, é muito raro uma pessoa se encontrar no extremo de qualquer desses eixos.

O discurso estereotipado, no entanto, é o que você vai encontrar nas caixas de comentários dos sites da vida. Aqui nos comentários do PapodeHomem eu já fui xingado de “esquerdista” -- ora, é óbvio que eu sou de esquerda, e na verdade acho que quem não é de esquerda tá perdido no tempo, é louco ou estúpido. A função do estado é defender os fracos, ajustar a meritocracia para que ela se torne eficiente e justa. No entanto, eu não xingo ninguém de “direita”, nem faria sentido isso: se a pessoa tem ideias de direita, por mais estúpido que isso seja, é prerrogativa dela.

E eu consigo entender o valor do mérito, do esforço individual e dos problemas inerentes ao estado com burocracia e corrupção. Em outras palavras, é porque eu entendo a direita e não a acho suficientemente cogente, que a posso criticar.

O máximo que eu posso fazer quando encontro alguém de direita é dizer que a pessoa está errada. Agora, me xingar de esquerdista não é como eu dizer que acho que alguém que segue certas ideias de direita é lunático (o que já é meio impolido, mas aceitável), é dizer que “esquerda”, como um valor em si, é xingamento suficiente! Isso é se recusar a entender a esquerda como articulação racional.

Isso não é pensamento político, é torcida de futebol.


publicado em 29 de Outubro de 2014, 22:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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