Ganhar um amigo é melhor que ganhar um debate

Como podemos, em vez de entrar em debates para ganhar nada, construir uma conversa propositiva e efetivamente sair vencedor de algo

Ganha debate quem sabe debater, não quem está certo. Exatamente por isso você precisa decidir de antemão o que vai querer: ganhar o debate ou contribuir para a conversa. Não dá para fazer as duas coisas. O ethos da vitória é contrário ao ethos da comunhão das ideias.

Primeiro, sobre esse negócio de vence debates. Dois exemplos:

Um é o do Lutero, o alemão que começou se metendo a fazer interpretação de texto em que o que valia mesmo era a obediência. Ficou irritado que via uma coisa diferente da que ele lia. Homens de batina cobrando o que Deus dava de graça. — Assim que a moeda no fundo do cofre tilintar, uma alma do inferno vai se soltar — litaniavam os vendedores de indulgências. E rima também em alemão: "Sobald der Pfennig im Kasten klingt, die Selle aus dem Fegfeuer springt".

Martinho Lutero e a cara de quem adora um debate e não gosta muito de amigos

No começo dos debates protestantes, quem se apresentava pelo lado dos protestantes era Melâncton, homem ainda mais preparado do que Lutero nos textos originais bíblicos e principalmente nos raciocínios iluministas. Pois Melâncton teve que descer da tribuna do debate. Não porque era lido e capaz, mas porque não sabia debater. Lutero, ao contrário, não era assim tão prima dona, mas tinha uma memória fabulosa e um raciocínio de relâmpago. Enquanto os opositores vinham com livros enormes, todos marcados para serem citados corretamente, ele vinha só ele com ele mesmo. Citava tudo de memória, e citava direito. Levou o debate e deixou os romanos a ver as notas promissórias do céu se desfazendo no ar.

A ciência tem também seus casos. Na França acadêmica do fim do século XVIII, rolou uma discussão entre os estudiosos do cérebro, divididos entre holistas e localizacionistas. Os localizacionistas estavam certos, mas o debatedor dos holistas era melhor e levaram a melhor. Ainda no começo do século passado gente da pesada, como Karl Lashley, defendia os holistas.

Foi preciso muita pesquisa para comprovar, sem chance para o debate, que determinados pedaços do cérebro realizam tarefas específicas, ou seja, que os localizacionistas estavam certos. Os holistas achavam que a única coisa relevante num acidente com dano cerebral era o tanto de massa encefálica perdida, não o local de onde ela saiu.

Hoje sabemos que no lado esquerdo do seu cérebro, na região pré-frontal, está a chamada área de Broca (Brocá, que o cidadão era francês). Se houver uma lesão naquela região, a pessoa entende bem o que ouve, mas não consegue articular na fala o que pensa, apresentando impressionantes erros gramaticais. Ponha a mão em concha sobre a sua orelha esquerda, e ali embaixo se localiza a região temporal conhecida como área de Wernicke (agora um alemão). Acontece o contrário com o azarado que tem uma lesão cerebral dessa: ele fala com fluência, normalmente tem um discurso desconectado, quase psicótico dependendo da extensão, e não entende o que ouve. Viu? Localizacionismo: cada pedaço do cérebro cumpre um pedaço da tarefa. Mas na França acadêmica de meados do século XVIII, os localizacionistas deveriam ganhar o debate porque tinham Broca e Wernicke, mas perderam porque precisavam mesmo era de um Lutero. Ou porque o “Lutero” estava sentado do outro lado.

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Aí você vai numa festa badalada, olha para os lados e se dá conta que não é o mais bonito, o mais rico, o mais charmoso nem o mais influente. As pessoas que você quer impressionar estão em outras rodas, impermeáveis a você. A sua opção: pisar em alguém em público para chamar a atenção. Nada de bobagens como a comunhão de ideias. Vencer.

É a hora em que aquele cara meio bobão resolve fazer papo miúdo e fala mal da presidente. Você nem se lasca com a dona, mas sua noite está salva. Mede de cantolho quem está ao alcance da sua voz, prepara seu melhor tom de barítono, e manda no peito do cidadão: "Você fala isso porque não passa de um coxinha de varanda gourmet!"

Todo mundo para e olha para ver o que está acontecendo. O cara gagueja, você firma o olho e manda mais uma: "O Brasil precisa de quem acredita no Brasil."

Você ganhou o debate. Que você não presta, nem se lixa com o Brasil e a presidente que se lasque, isso não tem a menor importância. O importante é que você venceu, posou de corajoso e patriota. O suficiente para as rodas se abrirem e você se refestelar com a atenção.

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O cidadão que faz isso pode não prestar, mas usou duas técnicas muito eficientes de debate.

Certa feita vi pichado num muro que falar mal dos outros é uma maneira desonesta de falar bem de si mesmo. Chame alguém de coxinha, pegando-o de surpresa. Para a audiência, automaticamente você vira uma pessoa politicamente consciente, que ama o Brasil e não aceita comentários descomprometidos. Mentira, claro, mas funciona.

Com a palavra “coxinha” e a expressão “varanda gourmet”, o cidadão usou a técnica do espantalho, que é estereotipar para atropelar. É dizer que todo petista é petralha, que todo tucano é direitista golpista reacionário, que todo crente é burro e que nenhum ateu tem princípios morais. Dito assim, é um acinte, mas no meio do debate, jogado de chofre, funciona e funciona muito bem.

Combine essas duas técnicas, e lembre-se que nem é preciso estar certo para vencer.

Agora que você conhece um jeito eficiente de vencer, está convidado a parar com essa bobagem.

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Passei a vida com o melhor debatedor que já conheci: meu pai. Sou, sem muito orgulho disso, cobra criada. Aos nove anos perguntei porque ele não me deixava falar. "Porque se eu deixar você falar você vai me enrolar e eu preciso te educar". Naquela época eu já dava nos nervos de gente preparada.

Digo com cancha que isso não é vida para você. O prazer de vencer um debate é fugaz, e alguém sempre sai perdendo. Se você é uma boa pessoa, vai até se sentir mal de ter atropelado alguém com sua atitude e palavras. No fim, quem ganha assim, perde.

Acredite no que digo: conversar para construir é bem mais difícil, mas os ganhos são duradouros. O debate visando a comunhão de ideias pede que, para produzir algo que preste, a gente ouça mais do que fale. Você não pode transformar ninguém num espantalho. Quer dizer, se a pessoa com quem você conversa é petista, é preciso deixá-la explicar como ela encara os maus feitos atribuídos ao governo. Se é tucana, precisa deixá-la explicar a fluência das acusações e a ausência de propostas. Se é crente, precisa dar a chance de a pessoa mostrar que é boa gente e que não vendeu o cérebro na tentativa de ir para o céu. Se for um ateu, e se você ouvi-lo com atenção, pois pode chegar à conclusão de que compartilha de suas irritações com a hipocrisia religiosa. E assim por diante.

No fundo, ganha quem ouve bem. Raramente ganha debate quem dá ouvidos ao outro. Por outro lado, constrói uma comunhão de ideias que só surge quando existe respeito mútuo, quando a pessoa do outro lado se sente entendida, mesmo que você continue discordando dela. Perde o debate, ganha um amigo, e o mundo será melhor assim.

Só tome o cuidado de escolher antes o caminho que vai trilhar. Não dá para vencer um debate e fazer um amigo ao mesmo tempo. Eu já ganhei muito debate por pura força argumentativa, e o gosto que fica na boca depois é muito ruim. Prefira fazer amigos, e você perceberá com o tempo o gosto bom do respeito, da troca de ideias e de um legado de tolerância tão bem-vinda.


publicado em 30 de Junho de 2015, 00:00
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Marson Guedes

É psicólogo metido a escritor. Gosta de assuntos difíceis, cervejas belgas e de morenas. Diz o que pensa no Facebook.


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