Leituras sobre São Paulo

Nota do editor: meu amor por São Paulo beira o absurdo. Tudo bem, eu sempre fui tendencioso para o exagero das pequenas sentimentalidades. Hoje, a paulicéia completa 459 anos.

Centrão da cidade, em algum lugar perto da Sé, 11:15 PM

(Foto: Felipe Larozza)

— Quebra essa, mulher! Isso é tudo o que tenho pra saidinha, me faz essa. É aniversário da cidade, pô!

Ele sai com um saquinho enfiando no bolso, olhando pros lados, sorrindo malandro. A mão não sai mais do bolso.

— Ae vagabundo, aproveita o indulto pra fazer merda, né? São Paulo não precisa de gente como você não.

São poucos tiros, mas bem barulhentos. Ninguém abre janela alguma. Não dá tempo nem de sentir dor, de pensar no que poderia ter sido.

Ele cai com a mão pra fora do bolso. Era um saco de bolas de gude pro filho de 6 anos. Paulinho, o moleque, vai esperar até as quatro e meia da manhã pelo pai. Vai dormir todo torto no sofá, vencido pelo cansaço.

No mesmo dia, só que mais cedo...

Orfanato Don José, 11:10 AM

Típico político: bigode, barriga atrapalhando o terno azul marinho, a gravata vermelha, dezenas de crianças em volta querendo bala, chocolate. Lá no fundo, encostado na parede cheia de rachaduras e mofo, um anão vestido de palhaço com chapéu das cores de São Paulo resolve movimentar o corpo e sai de fininho.

Lá fora, uma barulheira do caralho. Criançada gritando, dá pra ver, pela janela, o político caindo no chão e a meninada fazendo montinho nele. As tias tentam tirar as crianças, uma confusão aparentemente deliciosa - não para o político - de carinhos forçados pelos menores.

(Foto: Felipe Larozza)

Enquanto isso, o anão faz a rapa no orfanato. Entra no escritório da administradora e leva dinheiro, presentes, arruma o chapéu que tem, no lugar da flor na ponta, um adorno de isopor com o formato do mapa da cidade de São Paulo. Quase que se passando por um dos internos, o anão de barba dura e cerrada entra no quarto das crianças e rouba o lanche delas, pega alguns brinquedos (os menos destruídos), esconde na cueca os sabonetes do banheiro e sai com toda a cara de pau pro pátio. Todos olham pra ele.

O anão pilantra mostra o dedo pra todo mundo e vai embora.

— Caridade é o cacete. Tô precisado mais que esses fedelhos aê.

Sobe no busão com um saco cheio de coisas, passa por baixo, olha pra duas tias velhas e pergunta:

— Que é!? Tá olhando o que, caralho!?

Às 12:20 PM, o busão some na ladeira.

Imagine uma tira cortada em duas metades

Numa delas, uma família pobre: pais/filho/filha cortando um galetinho, todo mundo feliz. Do outro lado, mesa grande, casa de praia, comida farta, família entediada. O filho reclama que queria estar com os amigos, que ia ter umas gatinhas na balada em Sampa. A menininha reclama que queria ir pro parque da Xuxa de novo. A mãe tá bêbada. Uma galera em volta, meio que de urubu.

Foi-se pro espaço mais um feriado.

Outra tira

(Foto: Felipe Larozza)

Um cara sujo, maltrapilho, devolvendo uma grana que caiu no chão, na rua 25 de Março, pro cara que estava comprando um presente pra noiva dele.

— A gente faz aniversário de namoro junto com São Paulo.

Do outro, um senhor de terno recebe cinco pilhas do mesmo dinheiro enquanto aperta a mão de um cara vestindo um abadá de cor berrante, cheio de patrocínio, de nome de bandas, de sinônimos de "folia".

— Essa festa de aniversário da cidade vai ser um estouro. Não sei pro evento de vocês, mas pra mim vai.

Conta as notas, ri todo estúpido. Antes da noite cair, metade da propina vai entrar toda pelo nariz do filho do deputado. O garoto tem, entre os amigos, o apelido de "Speed".

Nem fodendo

Em casa, um paulistano nos seus vinte e tantos anos fecha o notebook e vai pra sala com a namorada. Ele estava lendo umas reportagens na Internet sobre o assassinato de um detento por policiais, de um orfanato que foi furtado bem no feriado da cidade, das opções de viagens no fim de semana estendido, do cara viciado em pedra que, mesmo assim, devolveu uma grana pro transeunte (depois de uns dias ele vai ler que esse mesmo cara caiu na internação compulsória depois de bater num enfermeiro que foi conversar com ele).

Ele senta no sofá, abraça sua pequena bem forte, gostoso. Uma menina bonita lá de Minas que mora em SP já faz uns quatro anos. Antes, tinha morado em Porto Alegre.

— Cidade louca essa que a gente vive né. Ainda bem que eu tenho você.

— Ah... meu bem. Você já pensou em mudar de cidade?

Abraçados, ele arregala o olho, quase assustado:

— Nem fodendo. Vai, vamos lá fora dar uma volta.

(Foto: Felipe Larozza)

publicado em 24 de Janeiro de 2013, 23:29
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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