Monte Crista: é como na vida

No fim de maio, Fabio Rodrigues convocou 12 caras para subir o Monte Crista, em Santa Catarina. Resumo do email que recebemos:

"Pode ser bem tranquilo e divertido, ou pode ser o inferno na terra. O melhor é ir esperando o pior. Vamo aê?"

Abaixo, alguns relatos.

Nada especial | por Cleyton Bruno

"A história é bem longa, mas nada especial. Não vale o relato detalhado. Vai desde torções, xingamentos, meditação hardcore, experiências duvidosas, peidos e arrotos, até naves, alienígenas, vida e morte, mulheres, imperadores, Clube da Luta e casacos não desaparecidos.

Algumas coisas que aprendi:

1. Cup Noodles e bacon valem ouro.

2. Miojo é moeda de troca.

3. Qualquer coisa que brilhe – estrelas, fogo e mulheres – prende a atenção dos homens.

4. Como não ver nada de especial em coisa alguma (e não tem nada de mais nisso).

5. Como inflacionar egos: "Cara, é isso, cara!".

6. Se quiser parecer sábio, basta aproveitar qualquer assunto ou apontar para qualquer coisa e dizer: "É como na vida".

7. A viagem ao Monte Crista não começa quando se recebe o convite nem quando se desfaz a mochila."

A ponte que abre e fecha a viagem para fora do mundo da Lei

Humilhação e distanciamento | por Gilmar de Souza

"Foi foda encontrar uma família falando que subiu devagarzinho, em cinco horas. Nós levamos mais de seis.

Acordei na segunda para alguns compromissos da AIESEC e, depois de me ver vestido decentemente, pensei: "Caralho, nem lembrava que eu ainda fazia parte dessa sociedade que se veste assim... Que estranho isso". Como se 3 dias na montanha fossem o suficiente para me tornar um completo estrangeiro, alheio à civilização."

O sentido da porra toda | por John

"Essa história não faz sentido algum. Saímos de nossas casas, viajamos pra um lugar longe, gastamos uma grana pagando a viagem e coisas necessárias pra subir, acordamos muito cedo, caminhamos 7 horas num terreno muito íngreme, nada convidativo, para chegar em um lugar onde não tem absolutamente nada para fazer... e com grandes chances de nos machucarmos.

Mas essa não é exatamente uma história sobre fazer ou não sentido – é uma história sobre experiências e um pouco de coragem.

Pra começar, se fosse só pra ver lindas paisagens eu não teria andando 7 horas. Eu pararia numa praia bonita e sentaria numa cadeira, comeria camarões e veria o pôr-do-Sol.

É íngreme, é bem íngreme

Primeiro temos a experiência do corpo e seus limites. Câimbras, dores nos pés, tensão nos músculos. Mas tem um aspecto mais sutil no corpo que podemos aprender com uma jornada dessas. Podemos notar como é a nossa pisada, qual parte do pé pisa primeiro, quais são as reações do corpo quando nós escorregamos, podemos observar a passada do outro, que o outro pisa mais aberto que você, podemos notar as diferentes formas de se passar o mesmo obstáculo, como varia nossa respiração durante esse tempo todo, podemos observar as batidas do coração, nossa reação ao frio...

Temos também uma experiência de mente. Não meditar no Monte Crista é impossível. Mesmo não sabendo o que é isso, se subir você vai ser empurrado para algum tipo de contemplação. No Monte, vários automatismos e mimos nossos são evidenciados. Podemos ver como não precisamos de muito para viver, como temos muita coisa, que somos garotinhos mimados com banhos quentes e comida fresquinha.

Mais sutilmente ainda, podemos ver o quanto nós reclamamos. Puta que pariu, nós reclamos demais! Na subida, 13 homens que escolheram estar ali ficam reclamando a toda hora da montanha, que está doendo, que nunca chega, que isso e aquilo.

Esses aspectos da mente são muito ricos. Eu ainda pude observar na minha frente como são construídas as identidades e como elas são reificadas por nós e pelas pessoas. Desde o começo o Giliard era o cara foda da subida, era Giliard isso e Giliard aquilo. Ainda teve o Tiago sendo construído como o cara da fogueira e sua identidade reificada como o cara da fogueira. Tivemos o Dom Pedro com a sua identidade de piadista, o Urso como debatedor beberrão, o Fábio como um guia-conhecedor-da-montanha que todos deveriam seguir (ou não) e por aí vai. Esses caras estariam fodidos se acreditassem realmente que eram tais pessoas.

Observando todos como formiguinhas lá embaixo fica nítido como somos presos ao nosso mundo, como achamos que aquilo é tudo que temos. Criamos nossa própria prisão e achamos que não podemos sair dela. Achamos que ela é boa e que as coisas são assim mesmo.

Além de aspectos de corpo e mente ainda temos a experiência que é mais visível a todos. O lindo visual, as cachoeiras, o céu mais bonito que eu me lembro de ter visto, as estrelas, o centro da Via Láctea, as plantas, as diferentes colorações do solo, o ar puro. Eu vi até algo que suspeito que seja uma reserva de alguma pedra preciosa correndo em um local que escalamos.

O Gitti falou:

"É o visual mais bonito que você terá cagando em toda a sua vida."

Pura verdade.

Escrevendo assim até faz sentido ir, né? Mas lembre-se que todos os motivos para você ir também são motivos para você não ir. Monte Crista é como na vida: tudo depende de como você encara a porra toda.

Nem tudo são flores, rios cristalinos e paisagens bonitas

Zorra Total | por Tiago

Três papos que lembro:

Manetta: "Ó, matei quatro mosquitos já". Tiago: "Muito bom. Faltam só um milhão".

Sábado, ao redor da fogueira: "Quem aí acha que nossas mulheres estão em casa vendo Zorra Total?".

Manetta puxando assunto: "Cara, você curte heavy metal? Conhece a banda X?". Fulano: "Não". Manetta: "Ok... Então acabou o papo."

Café da manhã dos campeões | por Celso Costa

"Lembro de algumas cenas...

O Fabio, nosso guia fake, se perde e solicita a sabedoria intuitiva do grupo em uma bifurcação. Esquerda ou direita? Gitti responde: "Acho que é pra direita... porque meu pau é torto pra direita". E mais pra frente: "Fodeu, lembrei que na verdade é torto pra esquerda, temos de voltar.".

Perdemos a dignidade já nas primeiras horas de subida, quando o Gitti passou a deliciosa pizza amassada num saco plástico, desejada e devorada por todos.

Na primeira manhã, tomamos o café da manhã dos campeões: um delicioso cappuccino sabor galinha caipira em um lindo copo de Cup Noodles.

Sábado à noite, Gustavo, Cleyton e Gilmar provaram que o frio é psicológico, mas só por 5 minutos. E o Fabio "jogou" o casaco do Gitti no mato, que ficou procurando no frio até perceber o que o Fabio estava vestindo...

Percebemos o quanto é fácil entreter homens: basta uma fogueira no frio e 13 panacas permanecem fitando o fogo como se fosse a mulher mais gostosa do mundo fazendo strip na nossa frente.

Na volta, Valgas e eu combinamos de descer na frente num ritmo mais rápido. Pra mim foi um dos pontos altos da experiência toda. Cacete, descer o morro em silêncio e concentrado foi como meditar por 3 horas. Perfeito. Sem falar que encontramos o "caseiro do Crista", um velhinho que parece estar sempre subindo e descendo.

Chegamos na base da montanha, cruzamos a ponte, caímos no rio e esperamos umas 2 horas pelo resto da galera para brindar e rumar à casa do Fabio, onde comemos o melhor risoto do mundo."

A mala modificada | por Gabriel Orley

"Chegando a casa do Fabio, antes de subirmos, ja pude perceber a diversidade cultural, vários semblantes, sotaques, características diferentes. Olhei a rapazeada toda equipada, mochila, botas, barracas, facão... Olhei para a minha mala de viagem modificada e pensei: "Me fodi!".



Durante a subida, o Fabio dizia:

"Galera, quando vocês acharem que estão fodidos, olhem para o Gabriel".

Foi uma das maiores experiências da minha vida. Pude confirmar somos um povo solidário. E foram vários os tipos de solidariedade, de uma ajuda para colocar a mochila nas costas a um curativo no pé, de um oferecimento de miojo até uma feijoada coletiva (de 3 colheradas para cada). No alto da montanha, a preocupação de todos com o próximo era visível."

Desconhecidos | por Juliano Manetta

"Amigo de meu amigo é meu amigo também, sempre pensei assim. E por isso fui sem conhecer nada nem ninguém e sem saber o que faríamos ali.

O silêncio era quebrado só por palavrão e previsão de que chegaríamos em quinze minutos, no máximo. Chegamos à saboneteira, que devia chamar azeitona na boca de banguelo. Escorregava mais que camisinha na mão de virgem. Cada tombo engraçado... Primeira parada, primeira cagada! Descobri por que estava pra trás: quatro quilos de merda! Fiquei zerado.

A medida que o pessoal se fodia, pé, costas, ombro, o papo ficava melhor e descontraído. Depois de mais de sete horas, chegamos na recompensa. Uma puta de uma cachoeira gigante no topo da montanha, lar de ninfas exóticas que por azar tinham saído pra ir no shopping.

Foi quando chegou um velho, uma mulher e uma criança pra desinflar o nosso ego e mostrar que nosso ponto final era apenas metade do caminho que eles fariam.

Esses desconhecidos pareciam amigos de uma longa vida. Apesar das horas juntas terem parecidos flashes de um sonho, senti que a segurança que eu tinha era saber que esses filhas da puta tinham todos um objetivo só: se ajudarem a viver melhor. Dei muita sorte de cair no meio desse momento.

Pra terminar, tambores tribais e cerva medicinal para relaxamento de músculos.

Foi foda."

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publicado em 24 de Setembro de 2011, 05:11
Gustavo gitti julho 2015 200

Gustavo Gitti

Professor de TaKeTiNa, colunista da revista Vida Simples, autor do antigo Não2Não1 e coordenador do lugar. Interessado na transformação pelo ritmo e pelo silêncio. No Twitter, no Instagram e no Facebook. Seu site: www.gustavogitti.com


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