O dia que eu bicicletei

A vida é muito curta pra você não tentar fazer um gol de bicicleta fora da área.

Uma nova máxima após o tradicional rachão de quinta-feira martela minha cabeça com uma frequência cada vez maior. A certeza que esse negócio de jogar bola uma vez por semana com direito a resenha não dá certo. É preciso mais. Pelo menos uma corridinha sussa duas vezes por semana. Academia, quem sabe.

O fato é que a idade bate. Trinta anos em novembro, amigo. O sobrinho do amigo que vem pra completar time, um desgraçado ligeiro de 17 anos, já passa voando. Os lançamentos longos são cada vez mais frequentes. Voltar pra marcar então, bom, só durante a primeira meia hora de jogo.

É natural. Caso você não seja o Zé Roberto, o desgaste vai chegar. A cabeça pensa, mas a perna não responde. Você vai se orgulhar de ter resistido tanto tempo em quadra. Esse mesmo orgulho que, volta e meta, vai te incentivar a tentar algo mais abusado. Mais plástico. Mais épico.

Tão épico que virou um artigo nas mãos brilhantes do amigo Leandro Magalhães. Algo que eu apresento logo após a foto que só serve pra você não cansar de tanto texto. 

O futebol, o trago, a grade

Era quarta-feira. A cidade era Cuiabá, o campo era na região do Coxipó. E eu estava lá. Chovia muito, muito, a avenida Isaac Póvoas inundada, a Miguel Sutil com água até no meio dos carros, mas sobre as quatro linhas do fatídico campo de futebol nenhuma gota escorrera do laranjado céu daquela noite. O vento era agradável. E eu, amigos, eu estava lá.

Tratava-se de um amistoso preparatório das duas equipes, semelhante ás pré-temporadas dos clubes europeus. Praticamente um jogo beneficente, só para arrecadar dinheiro com a bilheteria, aqueles jogos com um certo ar despretensioso. Eu vestia vermelho. Fagundes, laranja. Nos enfrentávamos pela 3ª ou 4ª vez. O que eu não sabia era que naquele dia ele tentaria o improvável.

O jogo era bom, meio lá, meio cá. O gramado não era dos melhores, a bola não era das melhores, os jogadores... bom, deles é melhor eu não falar, posso me comprometer, posso um dia enfrentar os laranjas outra vez, posso um dia, por que não, jogar com o uniforme holandês. Vou falar apenas de Fagundes. 

Volante, veste a 8, maior número que se permite usar. Pra ele, 9, 10, 11, 70, ou 99 é camisa de veado. Homem que é homem veste 3. Fã do Felipe Melo, tem sangue gaúcho e futebol argentino. Sabe como poucos a arte do toque e me voy. Se não fosse gremista, com a bola poderia ser comparado ao Falcão, joga no meio, cabeça erguida, sabe lançar uma bola a 40 metros para o ponta direita, sabe cobrir as subidas do lateral esquerdo. É um bom volante para se ter no time, mas bicicleta não é a dele. E foi aí que fomos surpreendidos.

Era um contra-ataque rápido, o time de laranja descia com 3 ou 4 para o ataque, o de vermelho estava desarmado. Era fato, levaríamos o gol. A bola ia com o meia esquerda, no centro Fagundes se desmarcava e corria livre, o meia viu e o lançou. 

Nesse momento algo como aquele efeito Matrix parou o tempo. 

Eu, exausto, corria pelo centro do gramado e observava a movimentação do camisa 8, de camarote, a 20 metros de distância, pude ver com detalhes cada movimento de seu corpo esguio. Enquanto a bola viajava cruzando nossa área, Fagundes preparava sua bicicleta. Primeiro jogou o braço esquerdo para o alto e girou pra trás como estivesse se apoiando ao vento. Em seguida o joelho esquerdo acompanhou o movimento do membro superior e ele flutuou, seus pés já não tocavam mais o chão. O pé e o braço esquerdo desceram, completando a primeira etapa da pedalada. Enquanto isso a bola se aproximava de Fagundes, o pé direito subia, o desenho era perfeito, como se tivesse sido desenhado por Leônidas da Silva. 

Os outros atletas acompanhavam o lance e não acreditavam. Será que ele vai conseguir? A bola estava muito alta, mas ele não parava de subir, as primeiras gotas de chuva começaram a cair, o céu fechou, o refletor ofuscava os olhos de Fagundes, a terra ficava cada vez mais distante. Seu corpo inclinado a 93º atingiu a altura máxima quando inacreditavelmente a bola passou. Veio alta demais, apesar de todo esforço de Fagundes ele não conseguiu atingir a redonda. Sua pedalada girou em falso, como se a corrente de sua bicicleta tivesse saído. O pé direito e a bola não se encontraram. 

Foi o maior desencontro da história. Como se Mary Jane jamais houvesse encontrado Peter Parker. Como se Juba e Lula jamais tivessem se conhecido. Como se Pelé não rolasse a bola para Carlos Alberto na final de 70. 

Fagundes não achou a bola e despencou como uma dúzia de ovos caindo ao chão. 

Foi um barulho engraçado.

Não se sabe ao certo quantas costelas ele fraturou. Continuou jogando como se nada houvesse ocorrido. Mas todos ali presentes sabiam que o lance entrara para a história como o gol que Fagundes não fez. Resolvi registrar aqui esse texto para que jamais aquela bicicleta seja esquecida. Um dia, quem sabe, poderemos reproduzir esse lance e incluir num filme comemorativo dos cinqüenta anos da carreira de Fagundes. 

Infelizmente você jamais entenderá o que sentimos naquele momento.

Quinze sortudos poderão contar com perfeição essa história aos seus netos.

E eu estava lá.

Não há imagens da bicicleta, mas há cenas igualmente lamentáveis de caimbras 

Fagundes passa bem. 


publicado em 21 de Setembro de 2015, 16:59
File

Fred Fagundes

Fred Fagundes é gremista, gaúcho e bagual reprodutor. Já foi office boy, operador de CPD e diagramador de jornal. Considera futebol cultura. É maragato, jornalista e dono das melhores vagas em estacionamentos. Autor do "Top10Basf". Twitter: @fagundes.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura