O homem velho

Uma trégua bem-vinda. Meus trinta e oito anos, meus seios mais moles que duros, minha conta bancária insignificante, meus contos inéditos. Para ele, nada disso depunha contra mim.

Quase ao contrário, quase chegava a agradá-lo. Tomava tudo isso como signos de juventude e relativizava meu próprio olhar sobre mim mesma.

Eu, sem poder esconder a surpresa, olhava sua pele bastante flácida e rugosa, os extremos dos ossos delineando-se com detalhes sob ela, pelos brancos misturados aos pouquíssimos ainda mais escuros. Mais surpresa me sentia ao constatar que isso significava pouco pra mim, calma e acolhida por seus olhos espertos, sem julgamento, e com conceitos diferentes sobre mulher – que me davam mais espaço, mais alívio, mais tranqüilidade.

Não estava mais habituada à idealização da minha juventude, à expectativa implícita num olhar de que eu deveria ser fresca, surpreendente, linda, livre.

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Eu me lembrava de já ter sido olhada assim por homens de menos de 38 anos – idade minha agora. Homens que, então, via como velhíssimos e se apresentavam a mim como porta-vozes da experiência da vida. Lembrava-me de, vagamente, perceber que os seduzia quanto mais imatura me apresentasse, sentindo-me um tanto inferior por isso. Afinal, o que eu mais podia prezar naquele momento não seria a juventude – que fartava – mas justamente uma segurança que parecia não chegar nunca.

Via em mim aquele mesmo impulso vivo outra vez. Achava graça dele, achava graça de tentar responder ao anseio nos olhos do homem velho de agora, de que eu fosse verdadeiramente jovem.

Tinha vontade de agir como uma garota, de dar gargalhadas cristalinas e adotar um ar meio sapeca, por mais ridículo que parecesse tudo isso a mim, como me conhecia na atualidade – uma mulher em plena crise dos quarenta, no auge da auto-exigência por realização e com um sentimento subjacente de que “agora ou nunca”, de que estava à beira de um fracasso definitivo.

Enquanto eu notava em mim esses movimentos, achava que ele percebia também em si o desejo e a fantasia de tocar novamente uma carne fresca e jovem, que podia se aproveitar da nossa grande diferença de idade para fingir ver em mim uma juventude muito mais tenra do que a que me restava.

Nossos olhos encontravam-se em silêncio e eu lhe sorria com muita sinceridade. Feliz por participar das suas fantasias, por sentir-me outra vez como se tivesse 19 anos, por poder levar tudo isso na brincadeira e não achar, na verdade, tão importante ter aquela idade ou não.

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Era bom poder fruir um momento lúdico de intimidade, sem ter que acordá-lo e dizer: "pare, você está viajando". Sem ter que me comprometer a manter a fantasia por mais tempo do que ela poderia viver por si mesma.

Não era o caso de explicar “a verdadeira natureza das coisas” que se passavam entre nós. A brincadeira que fazia nos sentirmos mais jovens era inofensiva.

Ele tocava meu rosto com sua mão rugosa num gesto profundamente sensual e másculo de sua idade biológica. Ele era mais atraente para mim quando atualizava seu olhar e ocupava em cheio todas as dezenas de anos que vivera. Nesse seu gesto de apoiar meu rosto como se eu fosse sua e olhar-me francamente, em cheio, nos encontrávamos sempre de uma nova maneira.

Atemporalmente, apenas um homem e uma mulher que juntos recebiam um pouco do que tanto precisavam.

Eu me via aliviada da carga da auto-exigência e podia apenas habitar um corpo que se prestava às fantasias e prazeres dele, não importando o que eu fazia, o que pretendia, o que conseguiria. Ele aproveitava a oportunidade, cada vez mais rara, de experimentar pele, textura e odor de carne moça com alguém que não o faria se sentir mais só. Havia grande amizade entre nós por essa possibilidade mútua de alívio momentâneo.

Numa dessas conversas com um ex-namorado, eu comentara que ele me surpreendia pela alternância, por parecer tão maduro e, segundos depois, tão inocente, tão criança, bobo, sempre com a maior tranqüilidade em alternar os papéis. E ele me disse que sentia que tinha todas as idades que já tivera. Caiu uma ficha.

Várias fichas caíam enquanto eu me sentia atraída sexualmente por um homem fisicamente decrépito.

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Quer dizer, eu não o via decrépito. Era elegante, bem vestido, bem cuidado, agradável, inteligente. Tinha a pele fina e manchada pela idade, rugas incontáveis, olhos brilhantes dentro delas, corpo leve e frágil, mãos firmes e uma curiosidade infantil pelo meu corpo.

Nos instantes iniciais da nossa relação, eu me perguntava em silêncio se iria mesmo pra cama com ele. Se houvesse essa oportunidade ou esse convite, eu aceitaria? Será que estava mobilizada a ponto de fazer eu mesma o convite? Seria o momento de começar francamente a seduzir? E como será que ele reagiria?

Àquela altura, já tínhamos avançado um tanto em confidências, revelado modos de pensar, peculiaridades, fantasias, desejos. Já estávamos íntimos, de certa forma. Mas tudo eram palavras. Aliadas ao ritmo sutilmente escolhido com que as dizíamos, com que fazíamos os pequenos gestos, de apontar algo pela janela, de puxar um cobertor, de pedir licença para ir ao banheiro. Eu olhava saber o que queria. Não querendo fazer algo que me constrangeria, não querendo brincar com os sentimentos dele, não querendo perder uma oportunidade.

Eu queria estar a seu lado, me sentindo bem assim. Livre assim. Desejava tocá-lo, por curiosidade. E se eu não gostasse?

Queria pensar nele, me inspirar nele, lembrar dele para sempre, ter seu telefone, visitá-lo às vezes, ver fotos de sua juventude, vê-lo nu, saber como tratava das mulheres, saber como era o sexo aos oitenta anos, perguntar sobre a guerra, ouvi-lo falar sobre o tempo em que a TV era rara, sobre o bonde elétrico, sobre os carros, sobre suas amantes. Queria a verdade do seu pensamento, a mim ele poderia dizer o que quisesse. Estava apaixonada.

Não sabia se podia dizer isso a ele. Meu maior terror é precipitar os encontros na banalidade.

O que se pode prever entre duas pessoas é quase sempre falso, eu acho, começam todos a se portar como acham que devem e não como se portariam se confiassem um no outro. Estávamos ali banhados na confiança. E ele falou.

Falou que, antes de mais nada, estava gostando muito de ter me encontrado aos oitenta anos.

Que nunca estragaria tudo lamentando não ter quarenta anos a menos. Que também não estragaria tudo dizendo que aos quarenta não saberia me apreciar. Saberia sim. Saberia me apreciar em qualquer idade, mas era preciso inverter o raciocínio e se perguntar: com quem mais, além de mim, ele poderia ter um encontro desses aos oitenta anos?

E nisso, me olhou e fez-se um silêncio enquanto prendíamos o riso. Dei-lhe um beijo cúmplice e carinhoso, pressionando meus lábios fechados sobre os dele. Ele fechou os olhos, se deixou beijar sem fugir e sem avançar e, quando me afastei, encostou-se em sua cadeira e ficou de olhos fechados, sorrindo. Deu um suspiro e um longo “aaaaaaah!” que logo virou uma gargalhada conjunta. Que beleza esse momento, que potência de vida conjuramos.

Aquele homem tinha de lidar com o enfraquecimento de tudo que o mantinha de pé, fosse inventando mil formas diferentes de sexo, fosse riscando o fósforo para ferver a água. A tudo o que era material ele tinha de dirigir o mesmo carinho e atenção. Tudo era tratado de forma especial.

Quanto tempo ficamos juntos? Não sei, de algum modo consegui perder a conta. Um ano e quatro meses me parece pouco para tudo o que vivemos. Dois anos e quatro meses parece muito tempo apaixonada por alguém. Mas perder a conta também faz sentido, subverter o tempo foi sempre a nossa marca. Sinto saudades, mas fico tranqüila.

Converso com ele até hoje, mentalmente, e muitas vezes isso me dá uma sensação de companhia maior do que qualquer outra. Mesmo com saudades, me sinto definitivamente menos só.

Das muitas dores que vieram, a pior não foi quando ele morreu antes de mim e me deixou aqui, sozinha de novo.

A pior dor foi da primeira vez em que pensei na perspectiva da sua morte, umas duas semanas depois de nos conhecermos. Aconteceu enquanto eu estava sozinha e nua em sua cama. Ele fazia um café, o longo corpo magro e pálido um pouco inclinado para o fogão, de perfil para mim, os cabelos ralos e brancos, as mãos ágeis e um pouco trêmulas.

Fui atropelada pela consciência do vigor e da saúde do meu corpo jovem, ao me dar conta da fragilidade do dele. Despedindo-se da possibilidade de usar um corpo físico como transporte, desprendendo-se da Terra.

Constantemente dizendo adeus aos objetos todos.


publicado em 19 de Setembro de 2013, 06:32
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Suely Mesquita

Compositora, cantora e professora de canto. Com Eugenio Dale, forma o Dio&Baco. Com Bob Gaulke forma o bobORsuely. É maníaca por Facebook. O conto "O homem velho" faz parte do livro inédito de contos "Primeira Pessoa".


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