Quanto vale o direito de ser deixado em paz

Quando alguém tem a sua intimidade violada, quem sai ganhando?

Hauptmann Gerd Wiesler é um agente da Stasi, a polícia secreta da Berlim comunista de 1984, que, encarregado de acompanhar a vida de um escritor visto como contrarrevolucionário, acaba engolido pela existência alheia no belíssimo A Vida dos Outros, o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2006.

Parece um contexto bem fantástico e distante, mas ele poderia ser a tia fofoqueira que não sai da janela ou o videorrepórter sanguinário Louis Bloom vivido por Jake Gyllenhaal de O Abutre.

Hauptmann, em certo ponto, é você ou eu sedentos pelo novo descuido de uma atriz qualquer na capa de um portal de notícias. “Mas, poxa, veja só... A saia dela subiu tragada ao vento, quase uma Marilyn Monroe moderna”.

Tem um tantinho deles num hacker isolado num quarto-bunker especializado em localizar novas imagens da Kate Upton, Jennifer Lawrence ou da Carolina Dieckmann tão belas quanto a natureza permitiu.

Diferente da Alemanha comunista, na América de hoje em dia o descuido gera bem mais que cliques, baba ou uma corrida ao banheiro. As imagens de centenas de gente famosa usurpadas de computadores e do iCloud, da Apple, foram postadas inicialmente no 4chan. Como era de se esperar, tão cedo o mundo descobriu e já estava por todo lugar.

Pelo WhatsApp, por mensagem - privada - de email aos chegados e na rodinha de gente no trabalho. Todos ansiosos para ver a nova pose da Mary Elizabeth Winstead completamente despida.

O famoso escândalo The Fappening - que é uma gíria em inglês para bronha - está aí para quem quiser ver que num mundo interconectado brota um pouco de Hauptmann em cada cyberattack.

A Wired conta numa detalhada reportagem que o Reddit, fórum autoproclamado “a página inicial da internet” e que hospedou a troca de arquivos com um punhado de celebridades, abocanhou 160 mil dólares naquela semana que estourou a boiada. Diz a matéria que é verba suficiente para manter tudo no ar por mais de um mês. Nessa conta não entram os aportes publicitárias extras que certamente se duplicaram no período.

A fina ironia é que o Reddit pertence à Advance Publications, que, por sua vez, é associada da Condé Nast, dona da própria Wired e de uma porção de publicações espalhadas pelo globo que você e eu lemos semanalmente.

Ou seja: nessa brincadeira de espionagem, uma publicação acabou descobrindo que uma co-irmã faturou milhares de dólares com fotos que não tinha direito. Fascinante.

O mais maluco de tudo é que a discussão recai sobre os smartphones, não sobre os seres humanos entre as telas touchscreen. Sobre as vítimas nos damos apenas o divino direito de mais uma leva de objetificação, de renovar o discurso de mulher-propriedade. Daí surgem os mais rasteiros dos argumentos, como o simplista “não tire selfies nua”. Estranho como mudando um pouquinho o discurso ele se torna o “não use saia curta”, “não use decote”, “não beba sozinha num bar”.

Mas o que realmente dizemos quando atacamos pela segunda vez as vítimas é: não tenha sexualidade, não tenha privacidade, não se fotografe e nem mande via mensagem pessoal para a pessoa com quem você divide a cama.

Se fizer, algum hacker paranoico do Wisconsin vai descobrir tudo e jogar num fórum qualquer e segundos depois tudo estará na tela do planeta inteiro.

A jovem Emma Watson acabou ridicularizada após seu discurso nas Nações Unidas, ainda que as mulheres tenham ido ao delírio. Naquele período pós-Fappening, a hashtag #ifmyphonewerehacked virou piada. A maioria dos homens se vangloriavam de fotos toscas de churrascos bêbados, numa valorização sexista que fazia questão de marcar território. Outros vinham exatamente com a gloriosa linha de culpar a vítima. Será que esse novo voyerismo não acaba estimulado por essa porção de redes sociais que pipocam dia a dia?

Parece que a coisa embaralhou o jogo para uma porção de gente, como se houvesse mais uma Muralha da China para separar o público e o privado. Se pelo Instagram posso saber o que determinada pessoa janta ou almoça, tenho o direito de vê-la nua, ainda que ela não esteja preparada e jamais tenha imaginado publicar essas poses na vida.

Tem um outro lado nisso tudo que é bem constrangedor. Seja lá qual for o real motivo, a apresentadora Xuxa tenta - e inevitavelmente consegue - tirar de circulação suas aparições nuas, todas elas consensuais.

A Playboy e o tal filme com supostas cenas inadequadas são como uma pesarosa nuvem que nunca se dissipa completamente da vida dela. Mas antes de tudo: não teria ela também o direito, agora arrependida, de recolher seu passado? Uma vez nua, sempre nua?

Temos também por aqui em nossas terras o caso do ator Murilo Rosa (um raro caso de homens que são vítimas de invasão de privacidade), que venceu um processo contra o Google por conta de imagens vazadas.

E, bem, vocês já se deram conta de que o Big Brother Brasil está em sua 15º edição, certo? Voyerismo é o segundo esporte nacional, pode apostar.

O círculo acadêmico dá seus passos para jogar um pouquinho de luz na discussão. A pesquisadora Whitney Phillips, da Humboldt State University, investiga especialmente o poder do cyberbullying vindo dos chamados trolls no livro This Is Why We Can’t Have Nice Things. A ativista Bell Hooks, autora do livro “Feminism Is For Everybody”, joga a cartada final. “A masculinidade patriarcal ensina aos homens que o senso de si e de identidade, a sua razão de existir, mora na capacidade deles de dominar os outros”.

Na mesma linha caminha um estudo organizado por Daniel Krueger, Maryanne Fisher e Paula Wright no jornal Evolutionary Behavioral Sciences. Analisando dados demográficos da Organização Mundial da Saúde (OMS), das Nações Unidas e outra porção de papeladas, os autores conseguem afirmar que há uma grande associação entre empoderamento feminino e o equilíbrio dos ambientes para construções menos violentas. A alta competição entre homens levaria a mortes prematuras nas sociedades pesquisadas, enquanto nos cenários onde há mais poder feminino, o ambiente acaba mais relaxado e a agressão mútua é reduzida.

“Se os vazamentos masculinos começarem a pipocar, será que teremos um futuro de menos invasão à privacidade?”. É o que questiona o antropólogo Eric Michael Johnson no artigo “Online misogyny of The Fappening: Stealling Celebrities Photos Is Not Human”.

No ano em que CitizenFour, o aguardado documentário com Edward Snowden saiu vitorioso na Academia, somos informados que espiões podem encontrar seu smartphone em segundos. Na outra ponta, o Firefox resolveu facilitar a sua vida e agora oferece o botão “esquecer”, além da busca anônima.

Como de costume, o casal Brad Pitt e Angelina Jolie mostra que dá para contornar os paparazzi e fazer do limão uma bela limonada. “Querem fotos do nosso casamento? Pois, me passa aqui 5 milhões de dólares que vou doar o seu dinheiro”.

No dia 2 de dezembro, o Twitter tornou a troca de arquivos - vídeos ou imagens - não consensuais em violação de conduta da ferramenta.

Alexis Ohanian, co-fundador do Reddit, informou no final de fevereiro que a plataforma havia “perdido a chance de se tornar um líder” nos casos de revenge porn. Desde o dia 10 de março, nudez publicadas lá sem consentimento estão sendo banidas sem a necessidade de requerimentos oficiais nem nada do tipo. “Não importa quem você seja, se uma fotografia, um vídeo ou imagem digital sua que contenha nudez, cenas sexuais ou qualquer conduta do tipo foram linkadas no Reddit sem sua permissão, está proibida no Reddit. Reconhecemos que essas imagens violentas são uma forma de assédio que nós não iremos tolerar”.

O agente da Stasi lá do princípio do texto acreditava que estava apenas fazendo seu trabalho até ser dragado para dentro de uma paranoia sem limite. O personagem de Gyllenhaal caiu na pervesão das cenas de violência, talvez pela falta de perspectivas num cenário econômico combalido da Los Angeles do princípio de anos 2010. O hacker que consegue imagens que valem ouro parece querer espalhá-las para subir alguns degraus na escala de importância entre seus pares. E a tiazinha da janela que sabe tudo que aconteceu na rua… Bem, essa não dá para saber de onde vem tamanha voracidade.

No fim, nada disso aqui era para soar moralista. Já peço desculpas adiantas caso tenha esbarrado num manual de boas maneiras e bons costumes.

De fato, você não vai para o inferno porque cedeu ao desejo e à volúpia de um corpaço hollywoodiano. É absolutamente corriqueiro. São coisas que acontecem a toda hora, a todo instante. Mas há por trás desses reflexos tão comuns, um tempo para respirar e não ceder ao turbilhão. Pode ser um pouco essa certeza de quem ninguém vai vasculhar seu baú digital ou o medo de que algo desse tipo aconteça com que aqueles que a gente realmente divide espaço e privacidade.

Sabe-se lá também se de repente em poucos anos essa discussão toda não fica absolutamente velha e todos nós percebemos que nós ficamos pelados e fazemos sexo de formas mil e até das maneiras mais óbvias e sem graça.

Mesmo assim, talvez seja possível imaginar cada pessoa como um universo próprio que merece espaço. E que a privacidade nasceu conosco e pode permanecer assim até que a gente decida jogar o próprio sex tape no ar cheio de cenas comuns. E aí, cara, ninguém vai dar a mínima.

Mecenas: HOPE 

Link Youtube

Para a Hope, a intimidade da mulher é só dela. Ninguém tem o direito de compartilhar, curtir ou postar seus vídeos e fotos íntimos. A menos que ela queira.

Nesse vídeo, a Hope transmite esse sentimento comum entre todas as mulheres, defendendo a sua intimidade.


publicado em 08 de Abril de 2015, 11:24
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Rafael Nardini

Torcedor de arquibancada, vegetariano e vive de escrever. Cobriu eleições, Olimpíadas e crê que Kendrick Lamar é o Bob Dylan da era 2010-2020.


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