Queria que fizessem com as novelas o que a tia fez com o quadro

Uma tia muito doida seria a tradução em português para uma possível adaptação para o cinema da história da ingênua Cecília Gimenez, a senhorinha de 80 anos que, numa tentativa de ajudar, estragou um afresco do século 19 que estava em uma igreja em Borja, Espanha.

Tá aí a cagada da tia

Claro que o caso é outro, completamente diferente desse, mas eu queria muito que fizessem com as novelas brasileiras, o que a tia fez com a pintura.

Porque, hoje, nas novelas, tudo é lindo demais, esteticamente belo demais. Explico:

Temos a novela Gabriela, adaptação do grande romance do escritor baiano Jorge Amado, que já foi ao ar na mesma emissora anos antes, em 1975, aquela com a Sônia Braga. Pois bem. Antes, a dona da casa das quengas era uma velha feia, cara de nojenta sofrida pela vida, endurecida por ser puta no sertão, interpretada pela atriz Eloísa Mafalda. Muito mais condizente do que, hoje, usarem a Ivete Sangalo como a dona do puteiro, mulher dura e sabida. Ela está lá apenas pela estética facial, pela beleza e tranquilidade de vê-la na televisão. O mesmo acontece com o turco apaixonado pela deliciosa Gabriela, o Seu Nacib, antes interpretado pelo ator Armando Bógus, um cara sisudo, com bigode que cobre a boca toda, uma cabeleira desgrenhada que fazia total sentido com o jeito de turco louco que a personagem pedia. Hoje, temos o galã Humberto Martins, conhecido por fazer novelas sem camisa, mostrando o torso bonito, peludo, esteticamente gostoso de assistir na televisão.

Não que isso seja errado. As emissoras sabem bem que a novela não é algo a ser digerido, mas sim degustado quando convém. É aquele momento de derreter o cérebro, momento tão necessário para qualquer ser humano que hoje vive na histeria coletiva das cidades grandes. Mas tem hora que fica bonito demais, estético demais, meloso demais. Tanta beleza cansa. Ninguém falaria do bendito afresco, certinho, estético, quadrado, se a tia louca não tivesse transformado aquilo numa coisa engraçada, desastrosa.

Afinal, a beleza pela beleza, boba, sem graça, já foi pro espaço há muito tempo, deixada de lado pelos pintores, pelos poetas, pelos músicos, pelos fotógrafos, até pelos desenvolvedores de videogame, pelos publicitários!

Mentira. Nunca pelos publicitários.

O que quero dizer é que a sujeira deve estar contida, a impressão, a expressão, a vontade de cutucar, de botar culpas em xeque, repulsa misturada a uma vontade latente, chacoalhar um pouco, mesmo nesse momento de derrota, de descanso profundo em que se chega do trabalho, da faculdade, da casa do caralho e só quer apertar o botão do controle remoto e ver umas gostosas, uns saradões, umas paisagens maneiras.

Ô pessoal do sertão pra ter a pele tão macia, sorriso tão branco, gente sofrida pra ser tão bela e serena assim

O papo é: não há mais motivo algum, nos dias de hoje, de se ser um artífice, e não um artista, de apenas botar a plasticidade, a beleza simétrica, o retrato belo e perfeito de algo e deixar de lado o equilíbrio dessa verdade. Afinal, não há beleza que se sustente sem a sujeira, sem o feio pra lhe fazer mais belo.

Já o artista tem nas mãos todos os elementos pra equilibrar tudo isso e transformar a realidade da novela em algo ainda mais próximo da nossa realidade, e ainda sim manter as peitudinhas lindas, os homens de sorriso forte, braços sedutores. Quem não gosta de ver uma boa putaria disfarçada de entretenimento em família?

O lance todo é não exagerar e deixar tudo plástico demais, seco demais, liso demais.

Há que se ter as véias feias, os carecas barrigudos. Hoje temos Ana Hickmann, Patrícia Poeta, Roberto Justus, Evaristo Costa, todos plásticos, coxinhas, em detrimento dos Chacrinhas e Bolinhas, velhos gordos, suados, um com a voz escrota e sempre vestindo roupas das mais espalhafatosas, o outro, careca, narigudo, com pelos do peito pra fora da camisa estampada, um show de feiura condizente com o horror dos programas dominicais. Hoje, os programas continuam igualmente horrendos, mas agora comandados por Rodrigo Faro, Eliana e uma cambada de gente bonita que anda com outras pessoas bonitas fazendo bonitezas em lugares bonitos.

Isso me assusta. Me faz pensar que estou em um outro lado de um outro mundo. Um mundo onde tias loucas estragam quadros que, de um jeito ou de outro, já estavam estragados.


publicado em 24 de Agosto de 2012, 13:05
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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