Casamento de verdade é sempre de mentira

Para ser marido e mulher é preciso, antes de tudo, fantasiar ser marido e mulher.

"Mentiras são sonhos pegos em flagrante"
- do filme "Amantes e Infiéis"

O que as pessoas fazem para ficar no Brasil

Um estrangeiro estava num dilema: queria ficar no Brasil mas seu visto estava vencendo. Então, sua namorada brasileira propôs que ele se casasse de mentira com ela para que pudesse permanecer no país. O de mentira era no sentido de que estaria claro que eles se casariam apenas pelo visto e continuariam a se relacionar como namorados, mesmo morando juntos.

Paralelamente ele pergunta a uma amiga se ela poderia casar com ele pois assim se sentiria mais a vontade com o "contrato" já que não havia nenhum vínculo amoroso. Ele argumentava que não se sentia a vontade para casar com a namorada porque queria ser livre: e se ele quisesse terminar? E se ela de repente mudasse e começasse a levar o casamento a sério?

Ele não se sentia à vontade para casar com ela de mentira porque a relação era recente e ele não queria se sentir preso.

O mais curioso é que, em nenhum momento, ele considerou questões práticas como bens, burocracia, nem mesmo monogamia. Gostava dela e queria ficar só com ela.

Pelo contrário, suas dúvidas eram daqueles sentimentais e difíceis de mensurar: como dividir e como romper, como casar e como descasar.

"Drawing Hands", M. C. Escher

O casamento de verdade é sempre de mentira

O casamento é como um parque de diversões: apesar de despertar emoções fortes e contraditórias, você pode se autorizar a vivê-las sem levar tudo tão a sério justamente porque, como todo ritual, ele é um lugar que te convida a fantasia.

Por isso, os relacionamentos de verdade são aqueles onde que você pode estar à vontade como em uma praça, circular, conversar com as pessoas ou apenas apreciar o movimento.

Na melhor das hipóteses, o casamento só é de mentira quando estamos nos relacionando de verdade -- pois aí ele não corre o risco de se tornar uma verdade insuportável e insustentável.

Olhar a instituição casamento como uma sentença, seja de castração imediata ou de conforto eterno, é o que faz com que tanta gente ou levá-lo tão a sério a ponto de morrer de medo, ou desejá-lo como se a festa, o padre e os papéis garantissem amor e felicidade para o resto da vida.

Quando pensamos em casar (assim como o estrangeiro do início do texto), temos medo de perder nossa liberdade e de não poder nunca mais voltar atrás. Queremos só ganhar e nunca perder nada. Então, por medo, ficamos barganhando com a liberdade, ao invés de nos apropriarmos e usufruirmos dela, vestidos de fraque e noiva ou não.

"Um bom acordo deixa todas as partes insatisfeitas."
- Calvin

A melhor promessa é o comprometimento

Se olharmos as relações apenas como relações, em que estamos compartilhando com outra pessoa os nossos momentos, o nosso caminho, o nosso espaço, as nossas idéias, os nossos sentimentos, podemos vê-las com mais leveza.

Assim como na infância brincávamos de médico, de professor ou de super-herói, hoje podemos brincar de ser casal, de ser marido ou de ser esposa.

Se aquilo que realmente importa já existe, qual o problema de fazer uma festa e assinar papéis?

Se aquilo que realmente importa já existe, qual o problema de não fazer uma festa e assinar papéis?

"Relativity",  M. C. Escher

Seja o MacGyver do amor

Não precisamos olhar para os relacionamentos nem sob o ponto de vista mais concreto e careta dos nossos avós, nem com desdém que marca as fluidas e efêmeras relações mais moderninhas.

É só nos relacionando que compreendemos a quantidade de armadilhas que temos pela frente. Um bom caminho não é evitar as armadilhas, mas desarmá-las você mesmo uma a uma, usando os recursos que estiverem a disposição, como um MacGyver em lúdico improviso.

A diferença entre a felicidade e insatisfação é o quanto estamos abertos às relações exatamente como elas são, e o quanto estamos dispostos a fazer não apenas o que desejamos, mas também o que precisa ser feito.

Assim, podemos curtir o parque de diversões como quem passeia pela praça. Sem medo do trem fantasma. Sabendo que a montanha-russa não é perigosa e só traz um frio gostoso na barriga. Em uma caminhada gostosa onde podemos sentar no banco da praça pelo simples prazer de desfrutar o movimento das pessoas.

Até que nossas mortes nos separem. Ou não.

Afinal, o que acontece em Vegas, fica em Vegas.

"Nos solitários cânions da cidade moderna, não existe emoção mais estimada que o amor. Entretanto não se trata do amor que a religião fala, é uma variedade mais ciumenta, restrita e no fim mais mesquinha. É um amor romântico que nos põe em uma busca maníaca de uma única pessoa em particular que nos dispensará de qualquer necessidade por gente em geral."
- Alain de Botton


publicado em 10 de Novembro de 2012, 12:00
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Alessandra Marcuzzi

Formada em Comunição pela Faap e em Decoração na EPA. Já trabalhou com TV e fotografia. Hoje é florista de coração. Escreve no blog Transmutando. Pratica trekking e trampolim acrobático. Pode ser encontrada imersa em algum lugar com natureza e silêncio, ou em alguma pista de dança do circuito indie rock de SP.


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