Ver na sua totalidade | Exercícios de Atenção, 3

Enxergar profundamente o outro e reconhecer nosso não-conhecimento.

Caminhamos pela vida consumidas por um verdadeiro afã classificatório: julgamos, definimos e então descartamos as pessoas que passam por nós como se estivéssemos rotulando potes de maionese em uma esteira industrial.

Esse é gordo, logo, é desleixado (sic); essa está vestida assim ou assado, logo, é periguete (sic sic!), etc.

Por que é tão difícil realmente enxergarmos, de forma aberta e generosa, as pessoas que estão à nossa volta?

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Esse é o terceiro Exercício de Atenção. Antes de continuar a ler, ou de fazer o exercício, por favor, leia o primeiro texto dessa série, onde eu contextualizo os exercícios. 

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Um exercício para enxergar profundamente

Em um ambiente público onde você vá estar por no mínimo uns cinco minutos (ônibus, metrô, fila do banco, sala de espera, etc), escolha uma pessoa e veja tudo sobre ela.

Seus cabelos, seus dentes, suas unhas, suas pintas, seus óculos, o bico dos seus sapatos, a gola de suas camisas. Quantas vezes na vida realmente, profundamente, individualmente enxergamos as pessoas a nossa volta?

Mantenha-se na mesma pessoa. Ao contrário do segundo Exercício de Atenção, aqui não estamos mais tentando nos dar conta de todas as pessoas mas escolhendo ver uma única pessoa com mais atenção e mais cuidado.

"0% interessado nas pessoas"
"0% interessado nas pessoas"

Resista com todo afinco à ânsia de julgar. O bico do sapato dele está gasto? Não, não é porque ele é relaxado ou desleixado ou pobre ou mulambento, etc etc. Abrace a enormidade do fato de que você simplesmente não sabe, e provavelmente jamais saberá, porque o bico do sapato dele está gasto.

Por que será então? Será que não tem dinheiro para comprar um novo sapato? Será que não se importa com essas coisas? Será que nem percebeu? Por onde será que anda para estar com os sapatos assim? Será que anda muito? Será que anda muito por ter um trabalho onde precisa caminhar? Ou por estar desempregado, procurando por uma nova colocação? Será que está chutando pedrinhas na rua? Será que é casado, solteiro, mora com a mãe?

Todo nosso corpo se comunica, silenciosamente transmitindo nossa biografia para o mundo.

Com um bico de sapato gasto, com um calo no polegar, com um óculos torto, já podemos construir diversas vidas possíveis.

Mas só se conseguirmos não julgar. Só se conseguirmos transcender nossos rótulos mesquinhos e sair de nós mesmas. Só se praticarmos um estado de não-saber.

Para assim observar com atenção e generosidade uma outra pessoa. Que tem uma vida tão incrível, tão profunda, tão única quanto a nossa.

O exercício deve ser feito com pessoas estranhas, sobre quem não sabemos nada. O que conseguimos ver nas pessoas que não conhecemos?

Não arrisque sua segurança. Em nossa sociedade sexista, as mulheres às vezes não podem observar homens impunemente, sem atrair uma interação talvez agressiva e indesejada. Por favor, sejam discretas e façam o exercício onde se sentirem confortáveis e seguras.

(E, aos homens, que esse seja mais um exemplo dos privilégios masculinos que desfrutamos sem nos dar conta.) 

Sem sair do exercício, busque o seu limite e, então, vá além. Se já é uma pessoa naturalmente observadora, seja mais.

Ninguém exercita nada ao fazer o que já fazia e se manter em sua zona do conforto.

Entrar em contato profundo e silencioso com a humanidade de uma outra pessoa que você não conhece é dificílimo. Talvez impossível.

Se o exercício lhe pareceu fácil, você provavelmente não está fazendo direito.

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Um exercício para aprender o não-conhecimento

Tenho viajado o Brasil promovendo uma instalação artística polifônica, improvisada, colaborativa chamada "As Prisões". Basicamente, passamos um dia inteiro compartilhando histórias de vida, exercitando nosso cuidado, saindo de nós mesmas, ouvindo com atenção plena.

Para abrir o encontro, logo de manhã cedo, antes mesmo daquele papo furado preliminar obrigatório, fazemos uma variação desse Exercício de Atenção "Ver na sua totalidade".

Sentadas em um círculo, olhamos para a pessoa a nossa frente e falamos o que estamos vendo, descrevemos a pessoa em detalhes, deixamos a imaginação voar. Quem é ela? O que quer? Do que gosta?

Esse exercício ensina duas lições, totalmente opostas e absolutamente complementares.

A primeira é a mesma do exercício acima, feito com pessoas desconhecidas: perceber quanta informação sobre nós mesmas estamos constantemente transmitindo ao mundo e também quanta informação sobre as pessoas a nossa volta estamos constantemente ignorando e ativamente não-enxergando.

A segunda lição, entretanto, depende da estrutura única do encontro "As Prisões" e seria difícil de repetir em outro ambiente.

Ao longo do dia, a medida em que vamos conhecendo mais e mais todas aquelas pessoas, a medida em que vamos ouvindo suas histórias e mergulhando em suas vidas, percebemos também os limites do nosso olhar.

Percebemos que mesmo o nosso olhar menos julgador era cheio de julgamento.

Percebemos que aquelas pessoas são infinitamente mais complexas e contraditórias do que tudo que pudemos perceber em nossa olhada mais profunda.

Em outras palavras, aprendemos tanto o enorme potencial quanto o gigantesco limite do nosso olhar.

E, assim, damos mais um passo rumo a um conhecimento de difícil absorção e de difícil compreensão, uma ficha que contra toda evidência se recusa a cair, um fato contra o qual resistimos e nos debatemos loucamente:

Que não sabemos nada. Que não temos como saber nada.

Sem ativamente exercer o não-conhecimento e a não-opinião é impossível praticar uma verdadeira atenção e um verdadeiro cuidado.

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Exercícios de Atenção, a série completa

1. Praticar um olhar generoso

2. Dar-se conta das pessoas

3. Ver na sua totalidade

4. Ouvir com atenção plena

5. Cultivar o não-conhecimento

6. Exercer a não-opinião

7. Não ser a constante

8. Colocar-se em outra pessoa

9. Escolher agir com cuidado

10. Visualizar o privilégio

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Mudança de nome: de Empatia para Atenção

A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.

Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado:  sem Atenção não há Cuidado.

Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.

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Os encontros "As Prisões"

São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?

O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.

Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.

Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.

Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.

Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.

Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.

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Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);

Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);

E são sempre todos rigorosamente ficcionais(Ou não: Alex Castro não existesó o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

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publicado em 11 de Novembro de 2014, 07:00
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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