Vilão não bebe no canudinho | Cotidiano #24

Como o tubo estreito e comprido pode nos dizer muito sobre a vilania que existe por aí

Houve um tempo que se dizia haver o bem e o mal, duas forças em eterna batalha pela disputa do que quer que seja. Lá pelas tantas, ainda no cristianismo primitivo, houve uma concepção de que não havia o bem e o mal, mas que o mal em si não era e nem estava. O tal não existia. 

O que se havia era tão somente o bem e sua ausência. Você não era mal, apenas estava distante do bem. 

"Olha o que esse cara tá falando, Jesus. Eu vou lá dar um pau nele"

Seja pelas sombras longínquas sem bondade ou por uma natureza ruim desde o sempre, em conversa antiga com o amigo Nick Maia surgiu essa, existem nesse e em outros mundos aqueles que conhecemos como vilões. Foram eles que povoaram a ficção, deram substância e contraponto ao benéfico herói, abalaram suas virtudes. Os vilões vieram para fazer a chapa esquentar, a base tremer, o coreto chacoalhar.

Maldoso, cruel, desprezível, esse tipinho aparece sempre com as piores das intenções, os mais sujos atos, os mais sórdidos pensamentos. Planeja o torpe, o infame. Nas novelas, nos filmes, nas histórias em quadrinhos, o vilão clássico é aquele que é bandido, que precisa ser eliminado para que a paz reine. 

Eu adoro esses caras. O Esqueleto do He-Man, o Scar do Rei leão (o Mufasa não, que esse era gente de bem). Angel Eyes de Três Homens em Conflito, o chinês Chong Li que cegou o Van Damme naquele campeonato loco. O Agente Smith do Matrix, cara, o Gus Fringe do Breaking Bad, o pirata Alma Negra. Uau. Só cara mau, só galerinha perversa.

Esses caras não bebem no canudinho.

Não dá, claro. Imagine um Darth Vader enforcando seu subordinado com a força da mente, apertando à distância indicador e polegar fazendo com que o cabra que fraqueja em suas decisões perder o ar. Ele é mau pra cacete! Daí ele sai pra um happy hour e pede alguma bebidinha doce e multicolor com gelo de água de coco e aquele canudo brilhoso e liso, pedindo por um biquinho. Não dá. Perde-se qualquer vilania, toda a a baixeza. 

Gata, me traz um Sex on the Beach naquele copo todo curvado, por favor

Esqueça os preceitos de cunho sexual. Não se trata de ter uma aura de macho. Carminha, Nazaré Tedesco, a mina de um olho só do Kill Bill ou então a mamãe Fratelli dos Goonies! Nenhuma delas chegaria em casa cansada de um dia de labuta vilanesca, desceria dos saltos e, descalças na cozinha, tomariam um refresco de limão com aquele danado do canudo flutuando pra lá e pra cá.

Não se trata de gênero, mas de passividade.

Aquela coisa boiando sem dono, com baba na ponta, você precisa caçá-lo com a ponta da língua, mantê-lo quieto com os dedos. Você se entrega ao aparato plástico. Na hora de sorver a bebida, ele é quem manda em você.

O que nos leva à exceção que confirma a regra: os "psicopatas".

São aqueles bem freak mesmo, que não possuem bem um objetivo de acabar com o bem ou vencer ou transformar uma coisa em outra, mas apenas carregam consigo sadismo, loucura, o tesão no sofrimento alheio. Essa galera pode operar no mais profundo caos, por isso são tão fascinantes. Hannibal Lecter, o Coringa (em quaisquer das formas que tomam dele no cinema e nos quadrinhos). Para essa moçadinha, o canudinho cai feito luva.

"Ah,  eu vou querer um Sex on the Beach naquele copo todo curvado, por favor!"

Imagine-se num bar com uma bebida na mão e o canudo. Você começa adquirir a noção de como segurar aquilo, de como fugir daquele treco, segura o copo com três dedos e deixa o indicador fazer a vez de segurar o canudo contra suas costas, afastando o artefato o mais distante possível da boca. O grande vilão não tem tempo para isso. Já para o vilão crazy feito esses, a cena é perfeita.

Isso porque a imposição não importa pra esse tipo de ser vil. Para eles, o desespero e o caos são aliados. Fazer uma bela cara freak e sorver no biquinho sua bebida com as mãos ensanguentadas ou prestes a se aproveitar de uma nova vítima ainda amarrada, amordaçada. Para esse recorte, a coisa fica bem mais interessante. Ainda assim, apenas para se confirmar o dito.

Vilão, cara mau mesmo, esse não se dá ao despautério de beber no canudinho não.


publicado em 31 de Julho de 2015, 00:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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