Vire sua vida de cabeça pra baixo, de vez em quando

Certo dia meu telefone tocou e aquela ligação mudou pra sempre minha vida, assim mesmo, bem clichê

Você acorda todo dia. Levanta da cama. Come alguma coisa correndo e sai para fazer o que quer que você faça da vida. Rotina é rotina para qualquer um, não tem jeito.

Eu estava vivendo a minha até que um dia o meu telefone tocou e um amigo me chamou para fazer um tal de Rally Mongol. A partir dali, as coisas não foram mais as mesmas. Ele me explicou que esse rali consiste em comprar um carro velho pelo e-bay em Londres, sair de uma cidade chamada Chichester, no interior da Inglaterra, cruzar 16.000 quilômetros atravessando toda a Europa e desbravar a Eurásia até Ullan Baatar, capital da Mongólia – quase no Japão.

Eu achava que ele só podia estar maluco e a única coisa que eu sabia sobre a Mongólia era que ficava em cima China no tabuleiro de War. Soma-se a isso o fato de eu também nunca ter me interessado por carros e não ser fã de dormir acampado por aí. Por outro lado, nunca fui bom em dizer não, e isso prevaleceu: acabei aceitando o convite. Quando percebi, estava prestes a fazer um rali e virar minha vida de cabeça para baixo.

Se quando você pensa em um rali te vem a cabeça o Paris-Dakar ou o Rali dos Sertões cheio de carros com computadores de bordo e caras de chapéu de safari, você não faz ideia do que é o Rally Mongol. Imagine um carro revestido de pelúcia e outro com um touro mecânico no teto. Agora imagine 300 carros assim em uma aventura sem percurso definido com algumas festinhas no meio do caminho, esse é o Rally Mongol.

E qual é o prêmio para quem chega em primeiro? Ser considerado um perdedor. Nesse rali, se você chega primeiro é porque não aproveitou a viagem o suficiente. Mas se você pensa que se trata apenas de mais um evento fútil, se enganou de novo. A viagem também é uma desculpa para salvar o mundo. Cada time tem que levantar mil libras (aproximadamente 4.900 reais) e doar o carro para uma instituição de caridade na Mongólia.

Voltando ao meu caso, eu sinceramente não sabia se estava me metendo numa aventura alucinante ou numa grande roubada. Comecei a pesquisar rotas no Google Maps e não conseguia encontrar estradas que nos levassem até Ulaan Baatar. Tentei todos os tipos de terreno e de satélite mas não me parecia haver uma maneira por terra de fazer todo o trajeto.

Foi então que resolvi entrar no site da organização do Rally e encontrar algumas respostas. De cara, encontrei a mensagem: “Nós somos os adventurists: lutando para deixar a sua vida menos chata”. Aquilo me pareceu interessante, mas não o suficiente, então fui adiante e resolvi ligar para os caras. Um sujeito chamado Sr. Jools – depois fui descobrir que era um dos criadores do rali – atendeu para me ajudar e então comecei com três perguntas bem básicas para quem nunca tinha feito algo parecido na vida: 1) onde se dorme durante o rali? 2) como levamos e estocamos nossa comida? e 3) o que acontece se algo der errado? Quem seria responsável por nós?

Jools foi curto e grosso, ele disse: “se prepare porque sua vida nunca mais será a mesma. Normalmente as pessoas armam barracas nas beiras das estradas ou dormem nos próprios carros. Se prepare psicologicamente porque a falta de comida será uma constante e para um time de quatro pessoas em um carro mil não adianta querer estocar mantimento, então, você deverá perder uns quilinhos.” Além disso, me lembro dele dizendo que o rali não se responsabilizava pelas equipes e que nós teríamos de resolver os nossos problemas. Para tanto, seria necessário contratar um seguro de vida, avisando a companhia que estava saindo para um rali que cruzaria três desertos num carro mil e que, portanto, resgate de helicóptero deveria estar entre as garantias da apólice.

O que em algum momento chegou a me parecer uma grande colônia de férias estava agora me parecendo um grande inferno inconsequente. Antes de se despedir, Jools ainda arrematou: “Isso não é sair de férias, é uma missão, e você não tem o direito de desistir. Nunca.”

Medo.

O Rally Mongol começou em 2003. Este Sr. Jools e um sujeito chamado Tom Morgan – dois ingleses que estavam morando na República Tcheca – se embebedaram uma noite e comentando sobre as chatices da vida normal pensaram na coisa mais estúpida que poderiam fazer. No dia seguinte, pegaram o carro que tinham e resolveram ir até a Mongólia. Chegaram até o extremo norte da Turquia quando o veículo deles simplesmente se despedaçou. Eles não desistiram.

No ano seguinte, já em Londres, conseguiram formar seis equipes para tentar mais uma vez. Das seis, quatro conseguiram finalmente chegar a Ulaan Baator, o paraíso desconhecido. Pouco a pouco o rali foi se estabelecendo e virando uma febre na Europa chegando a 300 equipes em 2012, ano em que eu me meti nessa confusão com o primeiro time brasileiro a topar a loucura.

Tenho que concordar com o Sr. Jools, aquela viagem mudou minha vida e com certeza a deixou muito menos chata para todo o sempre. Desde então acordo todo dia pensando em uma maneira de ir para a Mongólia, mas descobri que não é preciso percorrer 16 mil quilômetros para alcançar esse objetivo, você pode combater a chatice da sua rotina dentro dela mesmo, é só lembrar de virar a sua vida de cabeça para baixo de vez em quando.

Essa viagem toda virou uma série para o canal Multishow, que você pode assistir aqui, mas as histórias não couberam no programa e essa jornada acabou virando um livro chamado Tudo Errado que está em fase de financiamento coletivo.

Você pode ajudar ele a se concretizar no Catarse e recebê-lo em casa. Mais do que todas as histórias que se pode viver em uma aventura como essa, o livro narra uma viagem de auto-conhecimento e mostra como a estupidez pode vencer a chatice num mundo onde levamos a vida (e nossas rotinas) tão a sério.


publicado em 17 de Junho de 2016, 00:10
Raphael erichsen

Raphael Erichsen

Dramático desde criancinha, Raphael faz documentários e é diretor de criação na 3film. Além disso, curte guitarras barulhentas, gin e granola. Não gosta tanto assim de aventuras, mas sempre acaba se metendo em alguma. Pode ser encontrado no Facebook.


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