Você sabe que é fake, né?

Quando dividimos nossas vidas em diferentes áreas, costumamos obter um modelo família, carreira, namoro e/ou casamento, amizade e estudos. Se olhamos para o modo como nos relacionamos em cada uma destas áreas, podemos ver que somos um com a família e outro com a carreira; um com a namorada, outro com os amigos. É possível ter a impressão que em nenhuma destas áreas somos totalmente nós mesmos. Talvez se alguém juntar tudo, pode até dizer que somos X + Y + Z. Mas isso não é totalmente verdade.

Adicionamos, por exemplo, uma academia como uma nova área. Então criamo-nos totalmente diferentes. Se continuarmos a adicionar mais áreas, descobriremos que somos infinitas versões de nós mesmos, que construímos um avatar em cada lugar que passamos. Somos totalmente fakes, invenções. Somos descaradamente construídos por nós mesmos.

Ele acha que agora é o marido dela

Mas, até então, não há um grande problema nisso. Todas as pessoas são assim. Criamos o "eu" que achamos mais adequado ao ambiente. Nem por isso deixamos de ser quem somos – a criação é expressão de seu criador. O problema ocorre quando somos demitidos, a namorada termina, os amigos começam a namorar, a faculdade chega ao fim.

De repente, a peça mudou de nome e não sabemos mais com qual personagem atuar.

Quando o personagem morre

Nessas horas, podemos ouvir uma sábia voz:

"Ô imbecil! Você já viu algum ator chorar porque a peça acabou? Porra!"

Ora, se sabemos que somos apenas criações de nós mesmos, o personagem morreu, mas o ator segue intacto! Não há problema algum em usarmos nossos personagens, já que sem eles não nos relacionamos com o mundo. Quando a peça "Vamos nos casar!" termina, podemos sair calmamente do teatro em meio a vaias e aplausos. Estamos livres deste papel.

O momento em que mais sofremos e queremos resolver o "problema" é o momento em que temos mais liberdade. É o momento onde não há personagens, não há trabalho, e podemos ser quem quisermos. Como diria o grande mestre Chögyam Trungpa:

"Qualquer coisa que é criada deve, cedo ou tarde, morrer."

E quando personagens morrem, não precisamos mais nos esforçar para sustentar seus papéis.

A habilidade de deixar as coisas não resolvidas cabe muito bem aqui. Temos um impulso muito forte de ocupar este espaço com um novo papel, de encontrar um novo teatro para trabalhar. Seguindo essa urgência, não temos tempo de contemplar o ator que está por trás de tudo. Se aprendermos a repousar nesse espaço fora dos palcos, podemos respirar um pouco e clarear a mente, nos liberar totalmente do personagem que morreu, e só então aceitar um novo papel, conscientes do que estamos fazendo.

Ou vai me dizer que você quer arrumar um emprego igual o que você estava antes? Que você quer encontrar uma namorada que te lembre a ex?

A criação de um novo personagem

Então chega o momento. Decidimos que, depois de um tempo de descanso, é hora de voltar aos palcos. Arrumamos um novo emprego, uma mulher brilha aos nossos olhos, os amigos voltam à mesa de bar, começamos a pós. Neste momento, criamos um novo personagem. Voltamos a atuar dentro dos palcos de nossas vidas. Dessa vez com o olhos mais abertos, sabendo que são apenas papéis que desempenhamos.

Com um pé dentro e um pé fora, as coisas inexplicavelmente ganham um brilho a mais. Aquele emprego não é o nosso emprego, é o emprego que poderia ser de qualquer um, mas nós estamos atuando ali agora. Ganhamos todo o cenário do emprego, horários, compromissos, salários, reuniões, mas perdemos o peso de ter que sustentar isso, porque se cair, sabemos que o ator ainda estará lá, pronto para receber as vaias e aplausos de mais um papel bem atuado.

Link Dailymotion | Ela é uma atriz na cama. E fora dela

Botamos aquela gostosa de quatro na cama. Mas ela não é nossa mulher, ela também é uma atriz. Somos dois artistas atuando na cama, nos inventando e reinventando. Ela poderia ser de qualquer um, você poderia ser de qualquer outra, mas a peça está rolando e calhou de serem vocês. Este é o seu momento, o puxão de cabelo, o tapa na cara, a mordida no pescoço, as unhas nas costas. A atuação abre espaço para a improvisação, a criatividade, a leveza e a contradição.

E assim seguimos a vida, nos criando e destruindo, desempenhando bravamente nossos papéis. Podemos treinar abrir esses olhos se flagrarmos os próprios papéis que estamos usando agora, neste exato momento de nossa vida. Então que tal começarmos?


publicado em 08 de Outubro de 2011, 05:08
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Cleyton Bruno

Arquiteto de software e aspirante a escritor. Mantém os projetos "Oceano de Dharma" e "Quero Pensar".


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