A arte de permitir que os outros estejam certos

Em discussões infindáveis na internet, assim como na vida, às vezes, tudo que precisamos é admitir que estamos errados ou, melhor, simplesmente não se importar

Meu cérebro, como todos os cérebros, abriga uma quantidade inacreditável de informações acumuladas, e uma vasta quantidade dela diz respeito a coisas que vi na TV. Sempre detestei Star Trek, e isso é uma coisa que expresso em voz alta sempre que posso, mas basta eu ver um pedacinho qualquer de A Nova Geração, que logo descubro se tratar de um episódio que já assisti.

Também nunca fui exatamente fã do programa da Oprah, mas sem dúvida que o assisti por centenas de horas. Muitos anos após ele ter saído do ar sigo lembrando-me de um insight que Oprah compartilhou com a audiência. Não lembro o contexto, mas Oprah se surpreendeu ao perceber que não precisava atender ao telefone só porque ele estava tocando.

Foi um insight significativo também para mim, e não porque atender ao telefone seja uma tarefa particularmente difícil, mas porque significa que há uma liberdade invisível nisso, que eu de alguma forma não havia percebido antes. Mesmo que eu seguisse atendendo todas as ligações, agora parecia haver uma escolha. Antes de considerar a questão, era um relacionamento de mestre-escravo, em que uma pessoa lá fora aperta alguns botões, e meu corpo se levantava (talvez me retirando de um episódio antigo de Star Trek).

Lentamente começo a reconhecer outra liberdade ignorada, que é a liberdade de deixar os outros estarem certos (ou pelo menos se sentirem certos) mesmo que eu pense que estão errados. Quando alguém tenta dizer ao mundo que Crash é um filme brilhante, ou que a evolução é “só uma teoria”, esqueço que sou livre para deixá-los continuar pensando essas coisas.

Reconheço que tenho um longo histórico de debater minhas visões, mesmo quando não estou bem certo de porque o estou fazendo. Uma vez eu estava discordando respeitosamente de um colega de trabalho com relação a alguma coisa, e depois de eu levantar um ponto particularmente bem colocado, ele saiu do tom esportivo e disse: “Porra, você gosta mesmo de discutir, hein?!” Tentei dizer que ele estava errado, mas mais tarde indaguei a mim mesmo por alguns segundos se eu realmente gosto de discutir. Não, ele que gosta de discutir. Caso contrário ele teria percebido que eu estava certo.

E isso foi antes da internet se tornar onipresente em nossas vidas, antes de ir junto com a gente para o banheiro, quando “se conectar” era uma atividade que só se fazia em alguma momento do dia, em vez de ser um modo de percepção global adicional que acionamos a qualquer momento. Naquela época uma pessoa normal vivenciava muito menos momentos em que se considerava adequado levar uma questão além do ponto permitido pela polidez.

Hoje é alarmante o quanto é fácil se encontrar batendo chifres com uma pessoa distante, sem rosto, que está tentando dizer a você que prover saúde para todos os cidadãos é uma conspiração comunista, enquanto você espera que sua batata termine de esquentar no micro-ondas. O fato de não ter um rosto aumenta ainda mais nosso impulso de discutir. Você já deve ter percebido que é bem menos agradável discutir com alguém quando se pode ver seus olhos.

Suponho que muitos de vocês nem tenham ideia do que estou falando. Você vê uma afirmação com que não concorda, ou que por conhecer os fatos sabe estar errada, e então tem o impulso de corrigir, iluminar ou reprimendar o outro, mas isso fica apenas em sua cabeça. Você pode ouvir alguém louvando Nancy Grace como uma defensora altruísta dos vulneráveis, ou defendendo que Godfather III foi tão bom quanto os outros filmes da trilogia, e ainda assim não sente desejo algum de fazer a outra pessoa parar de pensar isso. Você é sábio o suficiente para saber que a “luta justa” em áreas de comentário na internet é quase sempre pura condescendência, e só provê motivos para a ignorância fincar suas âncoras e aumentar o tom da voz.

"Você vem pra cama?" "Não posso, isso é importante." "O que é?" "Alguém está errado na internet."

Mas muitos entre nós não são sábios assim. Essas almas debatedoras, que, dentre nós, realmente se engajam (e, como vemos, há zilhões de nós: basta examinar os comentários no Facebook ou no Youtube) muitas vezes creem estar de alguma forma realmente mudando as mentes, erradicando a ignorância e o pensamento superficial. Não estamos nos entregando a um passatempo destrutivo, ou no mínimo inútil, estamos salvando o mundo do erro, um usuário sem rosto do Reddit de cada vez.  Não só está tudo certo em se engajar nesses pequenos conflitos, trata-se de um imperativo moral. Não podemos permitir que a ignorância siga sem oposição. A internet (e o mundo todo, mas é mais fácil na internet) precisa ser patrulhada em busca de crenças ruins.

E, é claro, raramente ocorre a nós que estejamos errados. Talvez todas minhas fontes estejam incorretas, e nós de fato engulamos oito aranhas por ano durante o sono. Mas no entusiasmo de corrigir os erros de outros, nunca nos ocorre que talvez sejamos nós o problema, ou pelo menos parte do problema. Estar errado dá a mesma sensação de estar certo, e essa é a única sensação que todos os envolvidos têm, em qualquer discussão, sobre qualquer coisa.

Para aqueles entre nós inclinados a discutir cada ponto, é fácil esquecer que temos a liberdade de simplesmente seguir nossas vidas e permitir que os pontos-de-vista “errados” sigam. É fantástico o quanto parece que uma conversa qualquer precisa de sua contribuição, da mesma forma que uma chaleira gritando precisa ser tirada da boca do fogão.

Mas não é a mesma coisa. Uma perspectiva diferente, não importa o quão absurda pareça, não é uma emergência. A civilização sobreviveu por 10 mil anos antes de eu e você chegarmos aqui com nossas correções sarcásticas e nossos retruques condescendentes, e não fizemos exatamente muita diferença desde que chegamos. Parece que não precisamos tentar fazer parar as pessoas pensarem o que não queremos que pensem, e que nossa energia provavelmente será mais bem aplicada em outra coisa.

Em outras palavras, é possível, em teoria, se aposentar da Patrulha da Crença Alheia.

Reconheço que as crenças têm consequências no mundo real. Ações prejudiciais vêm de crenças ruins. Não estou dizendo que não devemos jamais opor a ninguém, nunca confrontar ninguém, nunca se engajar com aqueles que discordam de nós. Só acho que fazer luvas, usar um cabeça dura qualquer nas medias sociais de sparrer, não afeta as crenças de ninguém de qualquer forma útil.

Acho que o conselho de Richard Carlson provavelmente é um mote ideal para isso: deixe os outros estarem “certos” a maior parte do tempo. Afirmar e defender suas visões demanda uma quantidade enorme de energia mental e realiza quase nada. Algumas vezes é importante (e até mesmo útil) se posicionar numa conversa, mas geralmente é apenas uma forma de se entregar à destruição da paz.

Por “aposentadoria da Patrulha da Crença Alheia”, estou falando principalmente de se aposentar de discussões que não sejam cara-a-cara, e em que não haja respeito mútuo. Na mesma hora que a motivação deixa de ser boa vontade e vira má vontade ou incomodação, fui embora.

Espero muito que você perceba o impulso que surge antes das palavras saírem. Pode ser muito automático. Quando você começa a considerar a aposentadoria, é incrível como se torna atraente dizer algo, jogar um “Bem, na VERDADE...”

É como ser o policial de narcóticos no programa de TV, convencido pela família a se aposentar, mas que então, sem perceber, se descobre envolvido em alguma aventura fantástica, atrás de pistas e perseguindo marginais em telhados. Ele acaba de volta àquele mundo, dando socos em algum traficante no topo de um trem em movimento, e não porque conscientemente decidiu retornar à vida, mas porque seus instintos de detetive eram mais aguçados do que a consciência do que estava fazendo.

Então veremos como as coisas se dão na aposentadoria. Já percebi como esse impulso surge frequentemente. Já apaguei tantas respostas meio-escritas para o Reddit que me pergunto se alguma vez contribuí com algo que não fosse refutar alguém ou fazer um comentário de escárnio.

O convido a se juntar a mim, caso você seja um veterano da Patrulha da Crença Alheia. Vamos largar completamente esse jogo de capa e espada e ir jogar tênis. Ainda podemos expressar nossas visões em milhares de outras formas que não sejam tão duras e intemperadas. Temos essa liberdade, e não o culpo se você não a reconhece. Mas já posso adiantar que é melhor se aposentar. Só não vou discutir o assunto.


publicado em 20 de Março de 2016, 00:05
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David Cain

David Cain escreve no Raptitude, um blog que oferece um olhar sobre a experiência humana.


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