A arte perdida do hobby sem fins lucrativos

Porque nem tudo o que a gente faz precisa trazer retorno financeiro

Antes de qualquer coisa, preciso dizer que não sou um bom exemplo. Pelo menos não em todos os aspectos.

Comecei a escrever por prazer. Quando morei fora do país pela primeira vez, fiz um blog simples para compartilhar as novidades que encontrava. Depois, me dedicando aos exercícios físicos e ao Parkour, criei uma série de diferentes blogs divulgando o que ainda era pouco conhecido pelo país.

Tudo por hobby, pela simples vontade de criar algo.

Agora, mais de 10 anos depois do meu primeiro blog, acabei me profissionalizando. Hoje é a escrita que paga minhas contas. Tenho uma boa carreira, muito orgulho da minha evolução como escritor e cuido de uma equipe de outros criativos na empresa onde trabalho.

Este poderia ser um texto sobre como transformar seu hobby em profissão, ganhando a vida com o que ama, mas não é.

Quando trocamos tudo por dinheiro

Conforme a idade vai passando, o que antes eram hobbies que fazíamos pelo prazer de criar e imergir em algo novo, acaba se perdendo. Qualquer pessoa que busque uma atividade nova depois de adulto quase inevitavelmente ouvirá o questionamento: mas o que você vai ganhar com isso?

Fico bem intrigado sempre que penso como a gente deixa algumas coisas para trás quando a vida adulta chega. Desenhar, tocar um instrumento apenas por diversão, escrever nossas próprias histórias e vários outros exemplos de atividades que vão desaparecendo da nossa vida quando as contas começam a chegar.

Não é difícil olhar para os mais velhos e ver que essa beleza de fazer algo por prazer se perdeu. Se não tomarmos cuidado, acordamos trabalho e dormimos trabalho.

É claro que garantir o pão de cada dia é importante. Isso não é segredo para ninguém. Mas quando todas as nossas motivações estão voltadas ao ganho financeiro, deixamos de aproveitar sensações boas e criar experiências que nos enriquecem como seres humanos, além de algum aspecto objetivo.

Até entendo também quando alguém diz que gosta tanto do trabalho que não é vê como um esforço, mas a vida vai além de uma única atividade. E quando olhamos para pessoas que caíram no erro de transformar tudo em dinheiro, sentimos que falta profundidade em suas personalidades.

São pessoas muitas vezes até possuem sucesso profissional, mas que não nos desperta nenhum outro interesse, sentimos que são superficiais.

O erro em achar que devemos abandonar o que não traz ganhos objetivos está em ignorar inúmeros benefícios que podem surgir de outras atividades, desde referências, visão de mundo, saúde física e mental ou apenas a mais pura distração.

O engano ainda mais profundo está na crença de que tudo o que fazemos deve trazer algum retorno qualquer.

Nem tudo precisa ser uma troca

Pode soar estranho para os tempos modernos, mas nem tudo o que fazemos precisa trazer algo em troca. Podemos fazer coisas simplesmente porque gostamos, pela simples vontade de fazer algo que o máximo que conseguimos descrever é “acho legal”.

Existe um vício em construir justificativas enfeitadas que expliquem tudo o que queremos fazer. Você não pode se interessar por uma língua estrangeira falada apenas num país com 5 milhões de habitantes, é preciso justificar de alguma forma que seu interesse traz algum benefício futuro. Você não deveria aprender Estoniano, o mercado pode te beneficiar mais se estudar Chinês.

Se quiser estudar outra língua, deverá inventar uma boa justificativa, mesmo não sendo verdadeira, para sair impune do questionamento por sua motivação.

O fato é que espremendo bem, podemos inventar uma bela justificativa para qualquer coisa, mas isso não deveria importar. O ideal para qualquer hobby, qualquer atividade que não é o que paga nossas contas, é que nos dê vontade de fazer, sem motivo ou justificativa.

Cansei de ver amigos que deixaram de jogar vídeo game porque “preferem usar o tempo para algo mais produtivo”,  Ou até que “não assistem séries porque não trazem nada de construtivo”

Se o motivo fosse apenas porque não enxergam nenhum prazer nessa atividades, não haveria problema. Mas quando olhamos para tudo com a visão de que poderíamos substituir por algo mais produtivo, nossa vida começa a se tornar uma panela de pressão.

Quando você espera algo em troca, o interesse some

De tempos em tempos algumas atividades viram moda. Vamos pegar cervejas artesanais, como exemplo.

De alguns anos pra cá a ideia de montar sua própria cervejaria em casa acabou se popularizando. Kits prontos para você comprar e instalar na sua garagem, produzir sua própria Indian Pale Ale e impressionar os amigos no churrasco de domingo se multiplicaram nos sites especializados.

Mais ainda, além de fazer sua própria cerveja com a sua cara, você pode fazer disso um trabalho paralelo, vendendo sua marca de cerveja para amigos e conhecidos.

O plano parece infalível, mas na hora da execução as coisas não saem como planejado. A cerveja sai mais amarga, o processo é trabalhoso e faz bastante sujeira. Fazer uma única garrafa é um esforço maior do que você esperava.

Você começa a fazer umas contas sobre o custo de produção, quanto demoraria para começar a equilibrar os custos e quantas cervejas você consegue fazer nesse tempo. Olhando para os números você chega à racional conclusão de que é melhor desistir.

Em Easy (série da Netflix), uma cervejaria de garagem vira uma confusão enorme

Esse é o rumo que muitos hobbies tomam quando viramos adultos. Não vamos ser o próximo Joe Satriani, então porque comprar uma guitarra? Por que comprar um Skate novo aos 40 anos se não vou chegar perto do que foi Bob Burnquist?

Por que não posso fazer algo simplesmente por fazer?

Faz alguns anos, ainda pensando sobre essa ideia, comprei uma guitarra nova e um pequeno amplificador. Não era um conjunto caro e fazia o papel que eu esperava. Sentar em casa e aprender a tocar os refrões das minhas músicas preferidas.

Na época, com 28 anos, pude sentir o olhar de julgamento de inúmeros amigos que olhavam apenas para a motivação financeira.Todos tentando entender porque gastei dinheiro numa guitarra, se eu não ia ter uma banda, fazer aulas ou tentar me profissionalizar nisso.

Era, e ainda é, difícil para as pessoas entender porque você faz algo que não está disposto a dedicar sua vida para ser o melhor. E é assim que muita gente segue vivendo, transformando desejos internos e até pequenas vontades em análises extremamente racionais, tentando decidir se fazem ou não com base no retorno financeiro ou profissional.

Volte alguns anos e relembre quantas críticas vimos às pessoas que só queriam comprar um livro e passar seu tempo colorindo. Não é estranho que exista uma consciência coletiva que nos impede de curtir as coisas apenas porque gostamos?

O único motivo que você precisa para fazer alguma coisa

Sei que parece estranho fazer um texto para dizer isso, mas como tentei explicar, muita gente está olhando de um jeito distorcido para a vida.

Só existe um motivo bom o suficiente para fazer algo: você quer fazer.

Nós não precisamos de explicações incríveis, histórias bem elaboradas de como vamos nos dar bem, ou como é uma incrível oportunidade de negócio.

Assista televisão, leia livros bobos, colecione sua figurinha da copa do mundo e compre aquele Ukulele que você sempre sonhou para aprender a tocar Jack Johnson.

O que não podemos é deixar as atividades que gostamos morrerem pela busca obsessiva do retorno financeiro ou de alguma suposta prosperidade profissional.

Volte a desenhar, fazer ballet, natação e aulas de bateria. Pare de pensar na vida adulta como o fim da felicidade. Não é porque temos mais responsabilidades que precisamos viver enclausurados na busca por recompensas.


publicado em 08 de Julho de 2018, 00:05
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Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


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