A bula que o orgasmo não tem

Transar é trocar, é dar e receber

Na bula que regula nossa vida sexual está prescrito que é preciso transar em grandes quantidades, e que o ato se dará como completo quando o sujeito chegar ao gozo (seja o jorro masculino ou o orgasmo feminino).

Depois de um dia esgotante, é possível encontrar conforto descansando a cabeça entre duas coxas e se deixando ludibriar pelo clima úmido dos montes baixos. Mesmo assim, por mais delicioso que esse momento seja, talvez os corpos cavernosos não se encham de sangue e nem entrem em erupção orgástica.

“Tava ótimo, pena que a gente não terminou”, é o que se costuma dizer quando não se segue o manual.

Como o Jader bem disse em outro de seus textos, “O orgasmo é (ou deveria ser) só o ponto final de uma frase muito bem escrita.” Sua ausência faz falta, mas a presença, por si só, não dá sentido ao conteúdo. 

Infelizmente, não é assim que se encara.

Quando o orgasmo falha o enxergamos como sintoma, um diagnóstico de coisa errada, invalidando toda a delícia saudável do durante. Quando essa ‘falha’ é apenas um caso isolado, um dia em que não se está muito bem, não vemos como um problema. Acontece. No entanto, depois da primeira, as outras vezes começam a ser interpretadas como indícios alarmantes e, então, entra em movimento o ciclo da pressão-frustração.

Conforme a transa vai chegando no segundo tempo, as cabeças começam a se preocupar em marcar o gol. “Agora vai”, “agora tem que ir”. A pressão desconcentra, traz à tona o medo de falhar novamente, de se sentir frustrado outra vez, e em uma fração de segundo, o tesão espontâneo cai por terra durante uma tentativa desesperada de chegar ao orgasmo que, agora, tem muito mais chances de falhar novamente.

Para o homem, o gozo é indissociável do sexo há muito tempo. Para a mulher, isso vem se construindo nas últimas décadas. É uma grande evolução que a preocupação com o prazer delas tenha aumentado, afinal, o gozo é uma das sensações corporais mais cinestésicas que se pode ter. Ele é precioso, e valorizá-lo também é entender que ele não deve ser tratado como ordinário, que não deve ser transformado em mera nota fiscal do prazer, documento necessário a quem dá e a quem recebe, para validar algum tipo de relação.

Transar é trocar, é dar e receber, e nesse processo é natural e - mais que isso - quase necessário que a transação se intercale. Em algum momento, alguém vai dedicar o foco mais ao desfrute do outro, para depois intercambiar. Quem recebe sabe do prazer que está tendo, e quer - claro, porque está na bula - protocolar com o orgasmo. Agora, quem está no momento de dar, anseia ainda mais uma resposta de corpo e não de boca, e se nega a largar a toalha antes disso. Quer trazer o orgasmo para não quer parecer um muquirana de esforço e prazer.

Arte de Jean Francois Painchaud

Acontece que quando o ponto final da frase vira o único objetivo da sentença, não se presta atenção nos outros elementos que a pessoa vem comunicando. Na intenção de fazer gozar a qualquer custo, o altruísmo vai se convertendo em egoísmo. De tanto focar que “É preciso conseguir, é preciso ser o causador” e que seja logo, mal se nota que o ritmo de descompassou e que a sintonia caiu da cama.

A auto-pressão para gozar é desesperadora, faz brotar um sentimento de incapacidade. No entanto, quando é o outro que começa a fazer tentativas desesperadas para causar o gozo, a situação é ainda mais delicada. A pressão recai em dobro sobre o destinatário do prazer e as alternativas deste último para romper o ciclo afastam mais a excitação espontânea que, há alguns minutos, estava no recinto. “Pode parar de tentar, eu não vou gozar”. Não dá pra dizer assim, é feio, é sério, parece confissão de mea culpa.

Fingir o gozo é ainda pior. É mentiroso e catastrófico. Para interromper aquilo que está mais incomodando que dando prazer, se finge um ápice de tesão, dando a entender todo o contrário e fazendo com que seja mais difícil que o outro reconheça os sinais verdadeiros do corpo.

A culpa é da bula, porque gozar está lá e, na ausência disso, um médico deverá ser consultado. Você nunca leu, mas ainda que não a siga à risca, ao menos faz em linhas gerais o que a bula pede. Ela seria de grande ajuda, inclusive necessária, se o sexo fosse uma droga receitável.

Mas não é.

Arte de Jean Francois Painchaud

É que sexo não é corpo regido pela medicina, para dizer que tantos minutos disso e tanto daquilo causam benefícios assim e assado à saúde. É corpo, mente e um sei-lá-o-quê abstrato que uns chamam de alma. De inexato que é, o prazer, o ápice, pode estar beijo bem paradinho, no rala coxa molhado e ansioso, daqueles que desperta o sentimento de urgência. Mas não há urgência, o bonito é dedicar-se  a cada parte do corpo como se não houvesse outra para seguir adiante. É o prazer pelo prazer, sem finalidade absolutamente nenhuma. O que vier é consequência e só o momento de agora é realidade. O cronograma que apita pedindo o encaminhamento para o gran finale só existe dentro da nossa cabeça. Aquilo que aprendemos com a bula.

Mas orgasmo não é ciência, é arte. É uma daquelas esculturas inúteis que causam tremendo prazer ao corpo e a alma e que cada um entende de um jeito ou ninguém entende nada e mesmo assim acha bonito. É uma arte a dois feita de gente e, tanto gente quanto arte, não tem fórmula - não podem ter.

Só uma boa conversa - que também é troca e, portanto, também é transa - seja ela feita com palavras, olhares ou gestos, pode ensinar e guiar um orgasmo. Mas apenas um deles, porque diferente da bula, e tal qual um vírus, sua composição sofre mutações constantes.


publicado em 28 de Março de 2017, 01:00
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Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro "Amulherar-se" . Atualmente também sou mestranda da ECA USP, pesquisando a comunicação da sexualidade nas redes e curso segunda graduação, em psicologia.


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