A criatividade como ferramenta de resiliência em tempos de caos

Como podemos ressignificar criativamente momentos de crise? 

A experiência com o Coronavírus tem iluminado muitos cantos escuros da narrativa econômica e de desenvolvimento vigente, nos fazendo enxergar rupturas profundas no tecido da velha história.

O surto do vírus, apesar de causar alarme em todo o mundo, está mostrando como líderes políticos e corporativos podem tomar ações radicais de emergência para proteger o bem-estar humano.

Na China, os cortes de 25% de produção de dióxido de carbono devido à quarentena proporcionaram o primeiro céu azul em Pequim dos últimos 20 anos.  Se essa tendência continuar, os analistas dizem que é possível que isso leve à primeira queda nas emissões globais desde a crise financeira de 2008-09 e inspirem mudanças comportamentais de longo prazo. 

O ar está mais puro nos países confinados por coronavírus

A COVID-19 está nos impelindo a uma mudança na qual sentimos que a velha narrativa de mundo está morrendo, e que uma nova história precisa ser coescrita. Estamos fazendo isso enfrentando uma calamidade que só pode ser resolvida através da colaboração, usando a criatividade como ferramenta de resiliência para enfrentar esses estados de caos. Como sugere Charles Eisenstein em seu livro O mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível:  

“Talvez mudanças profundas só aconteçam através do colapso.”

O fato é que a vida, em toda sua imprevisibilidade, às vezes parece um vendaval descontrolado, que tira tudo do lugar quando menos esperamos. No entanto, se olharmos para esses estados caóticos com mais atenção, perceberemos a grandiosidade do que eles verdadeiramente representam.

Experimente observar o vento movimentando e transformando tudo ao redor, as árvores envergando e abrindo mão de tudo aquilo que já não estava vivo, as folhas dançando no ar.

Os assobios furiosos promovidos pela energia da Terra, que penetra nas frestas mais pequenas e encontra caminhos através das matas mais fechadas.

A crise é como esse grande vendaval: aquela coisa que nos assombra, que muitas vezes devasta lugares, que desperta o medo do desconhecido, que causa temor do caos gerado, mas que também leva, limpa, revela tudo aquilo que não estava firme e principalmente, abre espaço para o novo. Para conseguirmos transmutar a perspectiva do vendaval para o renascer que ele pode representar, somente usando nossa potência criadora coletiva.

Se encararmos a criatividade como essa força impulsionadora de vida, conseguimos enxergar ativamente nossos papéis enquanto agentes de mudança no espaço vazio entre as histórias.

Percebemos a velha história que morre, e sentimos as dores uterinas do parto de algo novo.

Por que não usamos nossa potência de co-criação para transformar  o colapso da velha história em um catalisador para a regeneração das interrelações humanas na Terra?  

Como podemos aproveitar esse momento em que há um espaço aberto para a coescrita de novos futuros?

O vírus está nos chamando para colaboração, deixando nossas máscaras e papéis de lado para nos vermos como um só. A pandemia mundial conseguiu o que há anos nações e entidades do mundo todo buscam, a cooperação entre Israel e Palestina.

Se quando temos um "inimigo comum" (combater a morte) conseguimos uniões milagrosas (aprendendo na dor), porque não conseguimos nos unir com o objetivo de gerar mais vida?

1. O Interser: ninguém é uma ilha

Thich Nhat Hanh

Aí vem a questão do interser. Termo trazido ao mundo pelo monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh, onde ele reconhece a interconexão da vida. 

"Eu sou, logo você é. Você é, portanto eu sou. Esse é o significado da palavra interser." - Thich Nhat Hanh

Quando entendemos que o que eu faço afeta o outro e que o outro faz me afeta, passamos a querer o bem do outro para que possamos estar bem também.

Assim, a teia de interdependência da vida vai ficando mais clara, e o conceito de outro ficando mais turvo.

2. Não deixar ninguém pra trás

No sul da África, um antropólogo propôs um jogo para as crianças de uma tribo. Ele colocou uma cesta cheia de frutas perto de uma árvore e disse à eles que quem chegasse primeiro ganharia todos os frutos doces. Quando ele lhes disse para correr, todos pegaram a mão um do outro e correram juntos, depois se sentaram juntos e comeram suas guloseimas.

Quando ele perguntou por que eles haviam corrido assim, já se alguém pudesse ter todos os frutos para si, eles disseram: 'Ubuntu, como um de nós pode ser feliz se todos os outros estão tristes?'

O Ubuntu na cultura Xhosa significa: "Eu sou, porque nós somos".

Assim, entendemos que o futuro é algo a ser construído por muitas mãos e não imposto por poucos, por meio de lógicas econômicas pautadas pelo individualismo e extrativismo, ou por sistemas educacionais padronizados, baseados em lógicas antiquadas, da era industrial.

3. Ação prática dentro dos contextos de cada comunidade

Podemos abrir espaços de cocriação, de colaboração para termos inúmeros sistemas vigentes, onde não existe a padronização, mas sim o englobar do todo.

Isso pode ser feito em pequenas escalas, através do movimento de localização, onde cada bairro ou pequena cidade se une em assembleias para cocriar seu futuro local.

Como o movimento Cidades em Transição, que é a designação de um movimento social baseado nos princípios da permacultura aplicados a uma comunidade. Trazendo um maior empoderamento para as comunidades e bairros e consumo local.

Rob Hopkins, criador do movimento, vem atuando na cidade em que vive atualmente, Totnes, criando assembleias e reuniões comunitárias para a imaginação do futuro da cidade.

Não ficando apenas no campo teórico, o movimento Cidades em Transição de Totnes já teve inúmeras realizações, desde criar sua própria moeda, reflorestamento do centro da cidade, instalação de painéis solares em casas financiado pela comunidade e escolha coletiva de que comércios poderiam abrir ali.

4. A natureza como inspiração

Outra forma que podemos colaborar, é nos inspirando na natureza. A disciplina da biomimética nos mostra que com a escuta e observação profunda da natureza conseguimos nos inspirar em jeitos que outros seres lidam com os desafios da vida.

Podemos procurar caminhos observando e estudando nossa própria casa, o planeta Terra e os seres que o habita. Passamos a ver a natureza como professora a ser consultada, e não domesticada.

* * *

Mas esses não são os únicos jeitos de cocriarmos nosso futuro. A verdade é que ainda não sabemos o que está por vir e como fazer, precisamos sair da nossa zona de conforto e nos jogar na aventura de experimentar. Nos unir com vizinhos, pessoas queridas, produtores, sentar e conversar, jogar ideias para o alto e testar.

Podemos aproveitar esse tempo que tiramos da nosso vida corrida e avalanche de compromissos, para respirar, olhar para dentro e sentir: como queremos viver nosso futuro?

Como posso imaginar um futuro possível que englobe minha comunidade local? Quem faz parte da minha comunidade local?

Precisamos saber que em muitos momentos não teremos respostas para essas perguntas. Mas isso não é bem um problema.

Como Daniel Wahl diz: “As perguntas são o caminho para a sabedoria coletiva".

Nota do editor: que tal conhecer a Futuro Possível?

Futuro Possível é uma plataforma de pesquisa, tradução e disseminação de narrativas regenerativas sob múltiplas perspectivas e realidades.

Utilizam-se do processo de tecer narrativas futuras e ancestrais que contribuem para a construção de futuros possíveis e desejáveis para o Planeta Terra, reconhecendo agências humanas e não-humanas nesse processo de regeneração.

Você pode conhecer mais sobre a iniciativa seguindo no Instagram.

A Anna Denardin e a Thais Mantovani confeccionaram esse artigo em parceria, especialmente pro PapodeHomem. Esperamos que essa contribuição gere boas reflexões e que vocês possam se inspirar para levar essa conversa adiante.


publicado em 29 de Abril de 2020, 00:05
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Anna Denardin

Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.


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