A morte breve

Uma crônica sobre a perda de tempo do stress cotidiano

– Olha o que o filho da puta está fazendo! Olha só isso! – esbravejou Mauro, com os antebraços apoiados no volante de seu automóvel. – Babaca!

Mauro se referia a um carro na sua frente que, a fim de conquistar alguns metros no tráfego congestionado, cortou pelo acostamento e, agora, pouco antes de fazer a curva, forçava passagem.

– Um corno desses me tira do sério! – reclamou, buzinando por longos segundos.

– Isso porque você ainda não viu o que estão falando a seu respeito no Twitter – respondeu a esposa, Valéria, no banco do carona, com o smartphone na mão.

– O quê?

– Iniciaram uma hashtag te insultando.

– Por causa da minha entrevista no jornal, ontem?

– Aham. Você virou o novo comunista do Brasil.

– Puta que pariu... Bando de analfabetos!

– O que você esperava, Mauro?

– Isso é outra coisa que me tira a paciência: a ignorância das pessoas! Vão agora começar uma campanha para difamar minha imagem!

– Acho que você tem que relaxar. Você tem uma imagem pública, é normal que esse tipo de coisa aconteça.

– Ah, pro caralho que vou relaxar enquanto esses imbecis ficam caçoando de mim na internet. – Parou por um segundo e gritou: – Caralho! Outro! E esse nem deu seta! Povo sem educação que corta pelo acostamento, filho da puta, filho da puta!

– Calma, Mauro. Ainda falta uma hora para a consulta.

– Sim! E é por isso que não estou cortando ninguém! Porque saí de casa com antecedência! São 7:30 da manhã, eu sabia que ia ter engarrafamento! Agora, esse bando de putos dorme até o cu fazer bico e fica aí, fodendo a porra do trânsito!

– Acho que nunca ouvi tantos palavrões em tão curto espaço de tempo. – Valéria riu.

– O doutor vai querer me internar, se eu continuar nesse estresse.

– Ainda bem que você sabe, Mauro. Lembre-se de que você está indo à clínica justamente para fazer um exame cardiológico.

– Bem, mas, se o coração não presta para aguentar a má educação das pessoas, então acho que posso preparar o caixão mesmo.

– E o mercado também está mal... – disse Valéria, lendo uma notícia.

– Larga esse celular! Pelo amor de Deus! Você não me traz uma notícia boa! Bateu! Pronto! Olha o que eu estou falando! O Fiesta bateu no da frente! Agora, o trânsito para de vez!

– Você está muito mais estressado desde que passou a trabalhar no setor de economia do jornal.

– Ah, os funcionários lá me irritam... Sem contar o diretor, que é um imensíssimo pau no cu!

– Então, sai. Volta para seu setor antigo.

– Não posso, né, Valéria? Se vai dar palpite inútil, é melhor ficar quieta.

– Pronto! Sobrou para mim! Aí, aí! Agora, o trânsito está livre. Era só aquela rua que estava parada.

– Até que enfim!

– Mas calma aê! Não precisa ir a essa velocidade.

– Já ficamos muito tempo parados no trânsito.

– Mas estamos com tempo sobrando... E aqui tem pardal!

– Foda-se!

Chegaram ao hospital com a antecedência prevista, mas, depois de Mauro fazer o exame, tiveram que enfrentar o atraso do médico para lê-lo.

– Já estou há uma hora e meia aqui, minha senhora – disse Mauro à recepcionista.

– O senhor é o próximo.

– Acho que a senhora não entendeu. Eu fiz esse exame há noventa minutos. E, até agora, não fui chamado pelo doutor. Dizer que eu sou o próximo, mas não apresentar nenhum pedido de desculpas, não adianta muito.

– Desculpe, senhor.

Mauro voltou bufando para o assento de espera.

– Uma hora e meia! Não se cumpre hora nesse país! Acham que somos todos vagabundos!

– Psh! – fez Valéria, que estava falando no telefone.

– A gente não pode se atrasar, mas eles podem, né?

– Mauro, estou no telefone!

Mauro se calou. Quando Valéria desligou, ele perguntou à esposa com quem de tão importante ela estava falando. Pôde ouvir uma voz masculina no outro lado da linha.

– Com o João – respondeu Valéria. – Ele não acabou a obra.

– Mas não estou falando? Não se respeita hora, não se respeitam prazos nesse país! Era para esse filho da puta ter acabado a cozinha há uma semana!

– Disse que faltou material.

– Claro. Faltou material porque o idiota não sabe matemática. Depois, um imbecil desses lê minha entrevista e diz que sou comunista!

– Estão chamando! Consultório 2.

Mauro se levantou ruidosamente e marchou, de forma barulhenta, até a sala do doutor, acompanhado por sua esposa.

– Bom dia, Mauro – disse o médico.

– Boa tarde – respondeu Mauro, ironicamente.

– Estou aqui com o seu exame – o doutor falou, ignorando o deboche.

– Pois não.

– As notícias não são boas – disse o médico.

Mauro arregalou os olhos. Era um exame de rotina, não estava esperando por uma notícia ruim. Buscou o olhar de Valéria, mas ela não o encarou, parecia assustada.

– Que houve, doutor? – Mauro perguntou.

– O senhor não tem mais muito tempo de vida.

Mauro voltou a buscar os olhos de Valéria. Ela lhe ofereceu as mãos, sem se virar para ele. Apertou com força, porém, os dedos trêmulos de seu marido. Mauro empalidecia. Só tinha trinta e um anos de idade, era tão jovem!

– Em quanto tempo vou morrer, doutor?

– Essas coisas são difíceis... Depende muito de pessoa para pessoa... Mas, pelo que vejo aqui no seu exame...

Mauro fechou os olhos. Lágrimas subiam desde a sua garganta.

– Acho que o senhor ainda tem...

Mauro tremia, todos os seus pelos estavam arrepiados.

– O senhor ainda tem... mais... uns... cinquenta ou sessenta anos de vida.

Que sensação péssima! Mauro não se aguentou e, angustiado, por fim, chorou. Morreria em tão pouco tempo! Então, era isso? Cinquenta ou sessenta anos de vida? Era tão pouco! Isso, com sorte, daria uns 22 mil dias ainda por viver... O que fazer em tão pouco tempo?

Saíram arrasados do consultório, tanto Mauro quanto Valéria. Os primeiros dias que se seguiram foram de choque. Cinquenta ou sessenta anos de vida... Depois, veio a resignação. Por fim, restou um sentimento inesperadamente bom.

Mauro, sempre tão ansioso, sempre tão preocupado, agora percebia que não tinha futuro, tempo este cuja existência é essencial para alimentar tanto a ansiedade quanto a preocupação.

Nunca mais reclamou no trânsito, no trabalho, em casa nem no consultório hospitalar (aonde continuava indo, para acompanhar de perto o processo de sua morte). Não tinha mais por que se estressar com todas essas coisas, afinal não teria mais do que sessenta anos de vida.

Morreria em muito breve.


publicado em 08 de Dezembro de 2015, 11:06
Marcelomaio

Marcelo Maio

Carioca, morando em Tóquio, lançou em 2015 a coletânea de contos "O cemitério dos solitários".


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura