A primeira manifestação

— Senhor?

— Pois não?

— Adão na linha sete.

— Pode passar.

— Sim, Senhor.

— Alô?

— Oi, Adão. Tudo bem?
— Oi, Adão. Tudo bem?

— Tudo. E o Senhor?

— Tudo em ordem. Diga.

— Será que o Senhor pode me emprestar uma meia dúzia de anjos?

— Será que Eu posso emprestar o quê?

— Alguns dos seus anjos. Aqueles que andam com espadas de fogo. É só por algumas horas.

— Para que você precisa deles?

— Bem, é que a coisa está um pouco feia aqui embaixo, estou precisando de uma ajuda.

— O que aconteceu?

— Não sei se o Senhor tem acompanhado, mas estão acontecendo alguns protestos aqui no Paraíso.

— Protestos?

— Isso. Começaram há alguns dias, e estão cada vez piores.

— Mas quem está protestando? E contra o quê?

— Bem, são os macacos. Eles dizem que não concordam com a atual situação política do Paraíso.

— Isso não faz sentido.

— Então, eu não sei. Estou apenas repetindo o que eles ficam gritando. A primeira vez que eles protestaram, eu fui conversar com eles e foi isso o que eles me disseram.

— E o que você respondeu?

— Eu? Eu não respondi nada. Eu não sei o que é “situação política”. Mas se eu falasse isso para eles, a coisa iria ficar feia para o meu lado. Então eu disse que ia ver o que podia ser feito. Fui embora e fiquei torcendo para que, no dia seguinte, eles tivessem arrumado outra coisa para fazer.

— Mas não arrumaram.

— Não. Pelo contrário, os protestos aumentaram. Então, se o senhor puder me emprestar uns anjos por algumas horas, só para eu me garantir aqui...

— Mas eles não pediram nada específico?

— Pelo que eu entendi, eles querem o direito de cuidar do Paraíso.

— Eles querem o quê?

— Cuidar do Paraíso. Os macacos alegam que, como eu sou um primata igual a eles, eles também têm o direito de cuidar de tudo aqui embaixo.

— Mas você explicou a eles que cuidar do Paraíso não é um direito, mas sim um dever? É a sua tarefa?

— Sim, mas eles responderam que sabem que eu ganho vinte cocos por mês e querem isso também. Eu disse que se eles acham que eu estou aqui tomando conta do Paraíso por causa disso, estão muito enganados. Falei que não é apenas por causa de vinte cocos.

— Fez bem. Fez muito bem. O que mais você disse?

— Expliquei que eu não cuido do Paraíso apenas para ganhar vinte cocos, mas sim vinte cocos, três peixes e um cacho de bananas. E que eles deveriam se informar melhor antes de protestar.

— Você o quê?!

— Bom, eu não sabia o que dizer, eu estava meio nervoso. Um monte de macacos me cercando e gritando comigo, eu não ia ser louco de mentir ali. Mas eu sei que não ajudou muito, porque quando eu disse isso, eles enlouqueceram de verdade. Achei que fossem me matar, disseram que eu estou desviando recursos do Paraíso e que tenho privilégios demais.

— Adão...

— Bom, a coisa ficou feia. Por isso que estou pedindo Sua ajuda. Uma das facções dos macacos inclusive ameaçou tomar o poder à força.

— Uma das facções? Como assim, facções?

— Desde que os protestos começaram, os macacos se dividiram em duas facções diferentes. Antes, era um grupo só, com todos os macacos. Mas parece que os babuínos brigaram com os outros e se separaram. Então, não são mais apenas os macacos protestando. São dois grupos diferentes de macacos. Um tem somente os babuínos, e o outro é formado pelo resto dos macacos. Todos estão protestando contra mim, mas não são aliados.

— Não?

— Não. Aliás, parece que se odeiam. Ficam gritando para eu entregar meu cargo. Ao mesmo tempo, ficam brigando entre si, para ver qual grupo vai assumir meu cargo. Mas a coisa está ficando cada vez maior.

— Como assim?

— Ontem eles resolveram protestar aqui na frente da minha caverna. Passaram a tarde inteira aqui na porta, gritando que exigem uma reforma política e que chegou a vez deles cuidarem do Paraíso. A hora que eu olhei, tinha uma multidão aqui na frente, todos gritando e com folhas de bananeira com os nomes das facções escritos.

— Nomes?

— Isso. As duas facções tem nomes. Eles prendem as folhas de bananeira em galhos de árvores e ficam usando como se fossem bandeiras.

— Mas que nomes eles deram a isso?

— Aquela que tem todos os macacos chama Paraíso Total, mas como não cabe isso na folha de bananeira, eles desenham uma estrela e colocam as iniciais no meio. Fica escrito lá, PT, no meio da estrela. A outra, a dos babuínos, se eu não me engano, é PSDB.

— PS o quê?

— PSDB. Paraíso Somente Dos Babuínos. E, olha, acho que os babuínos estão com o apoio de alguns pássaros também, porque desde ontem eles têm um tucano pousado em cima de cada bandeira. Mas parece que só os tucanos aderiram a um dos grupos. Os outros animais não querem nem saber.

— Ainda bem.

— Mas, mesmo assim... acho que ontem todos os macacos do Paraíso estavam aqui. Nem sabia que tinha tanto macaco aqui embaixo. Ficaram horas aqui na frente, gritando... Como era mesmo? Ah sim, “Adão, fique esperto! Vamos tomar o Paraíso!”. Aí eu saí para falar com eles.

— Certo. E aí?

— Eu disse a eles que, se fossem protestar, ao menos encontrassem um grito que rimasse, para não ficar tão ridículo.

— Oi?

— Na verdade, eu fiz uma proposta: se eu mostrasse a eles palavras que rimam com “Paraíso”, eles poderiam usá-las à vontade, desde que fossem protestar longe da caverna. E, para mostrar que eu estava disposto mesmo a negociar, disse que confiaria neles e, para mostrar minha boa fé, contei que “Paraíso” rima com “juízo” e também com “aviso”. E que se eles concordassem em ir gritar lá perto do lago, eu mostraria outras palavras.

— Essa foi sua proposta?!

— Sim.

— E eles?

— Começaram a me bater com as bandeiras e gritar que eu sou ladrão. Tive que entrar correndo na caverna.

— Sabe, Adão, às vezes você não se ajuda muito.

— Bom, achei que se eu mostrasse que estou disposto a ajudá-los, eles poderiam entender que eu estou do lado deles... Mas não deu certo. E pior que passaram a usar minha rima. O pessoal dos babuínos ficou gritando que “Queremos juízo, em todo Paraíso!” e os outros macacos respondiam que “Adão, um aviso: este é o nosso Paraíso!”.

— Parabéns, Adão. Parabéns. Você lidou extremamente bem com a situação.

— O Senhor acha?

— Evidente que não!

— Bem, o protesto acabou logo em seguida, de qualquer maneira. Eles começaram a competir para ver quem gritava mais alto, até que começaram a brigar entre eles, como sempre. Acho que acabaram se esquecendo de mim. Ficaram umas duas horas brigando aqui na frente da caverna.

— Entendi.

— Aí quando eles foram embora, eu que tive que limpar tudo, claro. Porque é assim: todo mundo quer tomar conta do Paraíso, mas na hora de recolher as coisas do chão, sobra para quem? Para mim, claro.

— Claro.

— Os macacos nem se importam com a sujeira que fazem. Acho que é por isso que os outros animais nem querem chegar perto disso. Sabem que os macacos se importam somente com eles.

— Sim.

— Na verdade... bem...

— Diga.

— Eu não entendo muito de política, mas a impressão que tenho é que os dois grupos são exatamente iguais. A sensação eu tenho é que cada um quer mandar no Paraíso somente para impedir que a outra facção esteja no poder.

— Talvez você esteja certo.

— E eles não parecem muito preocupados com o Paraíso. Eles ficam tentando usar os protestos para conquistar o apoio dos outros animais. Mas, ao mesmo tempo, cada grupo fica o tempo inteiro acusando o outro de fazer justamente isso.

— Sim.

— Mas, como eu disse, eles devem voltar hoje, então estou precisando de uns anjos aqui. Com espadas de fogo e tudo mais. Se algum deles souber fazer aquele lance de transformar em sal também, pode ser uma boa.

— Adão, eu não vou emprestar anjo algum. Não é assim que se controla uma manifestação.

— Mas eles ficam gritando aqui na frente da caverna, dizendo que estou roubando o Paraíso. Não tenho como ignorar isso!

— Eu não vou reprimir um protesto com violência.

— Bem, o que eu faço então? Eles vão vir aqui todos os dias, até conseguirem o que querem.

— Você sabe se as facções têm um líder?

— Não faço ideia. Quer dizer, devem ter. Mas não posso imaginar quais macacos ali são os chefes.

— Certo. Eis o que Eu quero que você faça.

E, no dia seguinte, Adão fez exatamente o que Deus havia falado. Assim que os manifestantes apareceram na frente da caverna, ele convocou os líderes para uma conversa.

Logo, um babuíno e um chimpanzé se apresentaram. Sentados dentro da caverna, Adão explicou que conversara com Deus e estava disposto a entregar o cargo a um dos dois grupos. Os dois macacos se agitaram, mas foram interrompidos por Adão, que avisou: o cargo seria entregue à facção que estivesse mais comprometida com o Paraíso. E que a única maneira de provar isso seria administrar o Paraíso sem nenhuma regalia. Nada de cocos, nada de peixes.

E, principalmente, nada de bananas.

Os líderes não pareceram muito felizes com a proposta de cuidar do Paraíso inteiro sem ganhar nada em troca. Ambos saíram para conversar com os respectivos companheiros e, menos de dez minutos depois, tanto os macacos do PT como os do PSDB comunicaram que estavam desistindo da manifestação e que não tinham mais interesse em governar o Paraíso. Enrolaram suas bandeiras e partiram de volta para a floresta, cuidar de suas vidas.

No dia seguinte, ninguém lembrava mais de facções ou dos protestos no Paraíso.

A não ser, claro, a serpente.

Desde que as manifestações começaram, a serpente havia discretamente fundado uma terceira facção, batizada de Pecado no Paraíso (ou PP) e que vinha ganhando cada vez mais poder nos bastidores. Isso porque, no início dos protestos, a serpente secretamente se tornou aliada das duas facções maiores. Assim, passou os últimos dias aconselhando os líderes das principais facções -- nenhum deles, claro, sequer desconfiava que ela fazia o mesmo do outro lado -- e aumentando o ódio de um grupo pelo outro.

Seu plano era perfeito. Na pior das hipóteses, uma das facções assumiria o poder e ela conseguiria um cargo de secretário; na melhor das hipóteses, os dois grupos se desgastariam tanto com os outros animais que criaria o cenário perfeito para que ela se lançasse como candidata ideal a governar o Paraíso.

Contudo, com a desistência dos macacos em tomar o poder, teve que adiar seus planos. Mas não desistiria. A política era o modo ideal de aumentar o seu poder. Se não no Paraíso, em outro lugar, no futuro.

Além disso, tinha certeza de que o slogan da sua campanha política -- “rouba, mas faz” -- era bom demais para ser jogado fora.


publicado em 05 de Julho de 2013, 21:00
B582422ba4b39ce741909ee5f025fa5e?s=130

Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura