A prosperidade na era das máquinas inteligentes

Mais esperto não significa mais sábio. Aqui estão as instruções para fazer o que importa.

Você vai ao cinema ou à biblioteca, coloca um disco novo pra tocar em casa ou simplesmente abre o Papodehomem. Encontra um filme, um livro, uma música, um texto e sai dali completamente perturbado.

Você sai da sala do cinema e quer matar o diretor. Você não entendeu nada. Entendeu tudo. Não importa. Preciso falar com alguém sobre esse filme.

Você está no metrô, no ônibus, andando na calçada, lendo na poltrona de cada de madrugada, as páginas vão passando, já está no último capítulo, última página, parágrafo, palavra, ponto. O livro acabou. Você quer gritar. Esse merece um lugar especial na prateleira.

Tudo que a gente faz por aqui é buscando essa sensação. Às vezes a gente acerta. Às vezes a gente erra. Mas o que importa é que a gente sempre tenta. Hoje, mais uma vez, a gente espera que você termine desse jeito porque da primeira vez que lemos esse texto, ainda em inglês, publicado originalmente no Medium, foi assim que nos sentimos.

De antemão, gostaria de deixar claro que isso não significa necessariamente a opinião do PdH. Nem não significa. Não é esse o ponto. Só queremos que você tenha acesso a esse texto e comente a sua opinião.

Agora eu vou me calar e deixar o Umair Haque falar com você. Boa sorte.

A prosperidade na era das máquinas inteligentes

Aí vai uma perguntinha inocente: o engenho humano vai salvar – ou destruir – o mundo?

Senhoras e senhores: deste lado, os utópicos. Eles acreditam que máquinas espirituais transcenderão o corpo físico e nos levarão a uma era dourada de seres angelicais, quase deuses – e pode até ser que você acabe sendo um deles.

Do outro lado, os distópicos. Eles acreditam que as máquinas criarão um mundo enferrujado, imundo e empoeirado, cheio de crianças de rua, malandros ardilosos e refugiados miseráveis… fora uma meia dúzia de Marias Antonietas e Luíses Zuckberg-Dezesseis.

E então, quem está certo? Os utópicos ou os distópicos? Este será o último de uma série de artigos que escrevi recentemente sobre como redefinir a engenhosidade humana. Sugiro que redefinamos a ideia de alta versus baixa tecnologia: alta tecnologia seria aquilo que melhora a qualidade de vida, e baixa tecnologia aquilo que a faz estagnar ou a piora.

Alguns de vocês leram esses ensaios como francas condenações de dispositivos, aplicativos e robôs. Permitam-me ser bem claro. Não são condenações. Não estou dizendo que todos os aplicativos, dispositivos e bots são automaticamente ruins. Deixe-me tentar explicar um pouco detalhadamente o que quero dizer, de forma a traçar essa distinção que desejo fazer entre alta e baixa tecnologia, e por que isso importa.

Aí vai um uso de alta tecnologia para os bots: robôs cirurgiões. A esperança é que eles sejam capazes de realizar cirurgias simples de forma mais acurada e eficiente do que os seres humanos. O custo, é claro, é que muitos cirurgiões terão muito menos cirurgias a realizar. Mas não precisamos chorar por isso. Eles podem devotar-se a cirurgias mais especializadas e complexas, criar técnicas novas, e assim sofisticar ainda mais a arte da cirurgia. Cirurgiões robô sem dúvida melhoram a qualidade de vida. Assim, eles são “alta tecnologia”. O que seria um uso de alta tecnologia para dispositivos e aplicativos? Dispositivos rastreadores de atividade física. Eles tornam possível – talvez até mais provável – que a pessoa média não só se interesse, mas seja incentivada a ficar um pouco mais em forma, e assim usufruir de uma qualidade de vida maior. Você pode estender esse exemplo para qualquer domínio que deseje, da educação à finanças pessoais.

Então podemos de fato usar dispositivos, aplicativos e robôs para coisas melhores do que apenas transformar as pessoas em neo-criados. Isto é, aplicativos de “economia compartilhada” tais como Postmates ou Magic, que fazem das pessoas garçons, faxineiras ou assistentes. E devemos fazer melhor. Por quê? Porque apps como estes levam a um desperdício de potencial humano que atinge a todos: o garçom nunca se torna um médico, engenheiro, cirurgião, e todos sofrem com isso, incluindo o (estremecimento) “mestre”. Assim, o simples fato é que cada vez que escolhemos, seja como consumidores ou como produtores, baixa tecnologia em vez de alta, agimos contra nossos próprios interesses.

Mas entendo. É abstrato demais. Então vamos dar um passo de cada vez.

A distinção entre alta e baixa tecnologia é velha. Você lembra daquele tempo em que costumávamos chamar certas coisas de “alta-tecnologia”, como se fossem algo quase mágico, cheio dos apetrechos incompreensíveis? E porque usávamos essa terminologia? Costumávamos categorizar as coisas como alta tecnologia baseados em como eram feitas. Tinham transístores, circuitos integrados…algum tipo de lógica interna operando? Caso tivessem, eram alta-tecnologia. Se não tivessem, certamente tratava-se de algo bem besta. Baixa-tecnologia, isto é, inerte. Não programável.

No entanto, no mundo de hoje, essa distinção não opera mais. Tudo está rapidamente se tornando programável – da TV à geladeira, até o sofá, o carro e o “eu” digital. Já que tudo é “alta tecnologia”, nada acaba sendo de fato alta tecnologia. Caso pensemos as coisas de acordo com o uso antigo dos termos – se tem uma lógica interna que a torna programável ou não – então empregamos uma diferença que já é irrelevante. A verdade é que hoje quase nada é o que uma vez chamamos de baixa tecnologia. Assim, mantendo teorias e modelos concebidos para coisas de pedra, mas vivendo num mundo feito de smartphones, cada vez mais não conseguimos pensar de forma séria, crítica e profunda sobre o engenho humano. Sabe minha jarra? Até isso é alta tecnologia hoje em dia.

Ainda assim, o pensamento crítico sobre o engenho humano, erguido em distinções precisas e significantes, nunca foi tão necessário. Nossas criações estão mudando a sociedade, o planeta e nossas vidas, de formas profundas, sem precedentes históricos – mas muitas vezes de formas indesejáveis. E por quê? Porque nos levam rápida e dramaticamente a uma menor qualidade de vida. As redes sociais nos deixam mais infelizes. Os apps reduzem os trabalhos a algo semelhante à neoservitude, gente que é contratada para assumir todo o risco e receber a menor recompensa possível. Bots assistem a todas as nossas expressões e ouvem cada uma de nossas palavras, criando assimetrias de informação novas e ainda maiores. Assim precisamos desesperadamente pensar séria e criticamente sobre a tecnologia – mas empregar conceitos e modelos datados, elaborados para um mundo burro e não para o mundo esperto de hoje, nos impede completamente de fazer isso.

Como, então, podemos começar?

A grande questão hoje não é se as coisas podem ou não ser programadas – mas o que as programamos para fazer. Programamos o mundo a nosso redor para melhorar a qualidade de vida de todos? Ou o instruiremos apenas para enriquecer um pequeno número de pessoas – ao custo de até mesmo a qualidade de vida deles? Qual é a diferença essencial entre a alta e baixa tecnologia nessa nova definição: como programamos o mundo ao nosso redor. São esses os dois extremos do espectro. Talvez a verdade, como sempre, esteja em algum lugar intermediário entre eles. Ainda assim, precisamos nos esforçar para fazer as melhores escolhas.

Pois somos nós que faremos desse mundo um novo mundo. Um mundo que nem chegou a ser sonhado no vasto horizonte da história humana. Considere isso. Certa vez fomos reféns do mundo natural, vítimas de sua fúria, aplacando seus deuses com rituais. Então, depois de sangrentas revoluções e muito esforço, achamos que finalmente encontraríamos a liberdade. Mas agora descobrimos que a verdade é muito mais complicada. Não somos apenas livres ou aprisionados. Somos algo mais que isso. Somos poderosos. Estamos começando a ter poder sobre o mundo a nosso redor, de forma que ele hoje faz coisas que quase não chegamos a imaginar.

Este novo mundo é diferente do velho mundo. É vivo. É responsivo, consciente, animado. Nele, não somos bem deuses – mas somos certamente mais do que os mortais que fomos uma vez. E ainda assim, é precisamente esse poder recém-obtido que pode reverter a liberdade que obtivemos. Em nossa liberdade, fizemos um mundo que pudemos refazer quase de qualquer jeito que quisermos. E agora a escolha está diante de nós. Faremos um mundo em que o que mais importa somos nós mesmos? Em que nós somos maximizados, melhorados, priorizados? Ou faremos um mundo em que o que mais importa é desvalorizado, diminuído, atrasado? Será o novo mundo programável um mundo em que a pessoa comum não é mestre ou servo, mas é o que é – ou será um mundo em que máquinas mais eficientes simplesmente levarão seres humanos a um estado cada vez maior de servidão?

A liberdade não é apenas “fazer o que se quer”. Liberdade é a possibilidade e a capacidade de melhorar nossa própria qualidade de vida – alcançar nosso potencial mais pleno. Assim, a grande questão hoje é essa. Quando programamos o mundo ao nosso redor, o estamos programando para uma liberdade desse tipo – ou o estamos programando apenas para que nos tornemos apenas linhas num algoritmo, cativos de um programa, servos sem agência, criados sem potenciais? Um mundo novo assim, não importa quão brilhante pareça, será sem dúvida um mundo em que cada um de nós se encontrará diminuído – no qual sonharemos, rebelaremos, desafiaremos, criaremos, conheceremos, perdoaremos e amaremos cada dia um pouco menos. Caso sejamos pessoas razoáveis, deveríamos todos querer o exato oposto de um mundo assim: isto é, uma situação em que cada dia, pouco a pouco, nos aproximamos mais de felicidade, sentido e finalidade.

Um mundo em que tudo é feito de transístores, microchips, lógica, programação, exige de nós que a própria ideia de alta e baixa tecnologia seja redefinida – e que então empreguemos essa distinção para fazer escolhas melhores e mais sábias quanto a nossas carreiras, nosso tempo livre, nossa educação, trabalhos, realizações, objetivos, vidas. Que não desperdicemos essas coisas no que é “baixo”, mas sim as devotemos ao que é “elevado”. Se nos dedicamos a considerar de forma séria e relevante coisas como prosperidade, sociedade e engenho humano, aprenderemos a cultivar nossos sonhos, a direcionar nossos esforços para o que realmente importa, em vez de meramente nos contentarmos com usá-los para atravancar nosso próprio potencial, e é para isso que precisamos diferenciar alto e baixo.

Pois sem fazer essa diferença, considere bem onde acabaremos. Nossa pior expectativa seria acabarmos servos de mestres. Mas a melhor expectativa seria acabarmos mestres de servos. E isso é só outro jeito de dizer “outro tipo de servo”.

Estamos presos pelo mesmo sistema, pelo mesmo algoritmo, na mesma máquina, apenas atados com amarras douradas. E, portanto, também não seria liberdade estar no papel que se espera de nós. Não seria a liberdade de deuses, nem de homens. Não seria a liberdade de se ser o que se é.


publicado em 30 de Janeiro de 2016, 00:05
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Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


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