A solução para o doping é estender a punição para além dos atletas

O risco de ser punido e até de prejudicar a saúde ainda é pequeno perto dos benefícios de curto prazo que o esporte proporciona

O doping no esporte está bastante disseminado e não dá indícios de redução. Um grande número de atletas está deixando as Olimpíadas do Rio. Maria Sharapova, por exemplo, foi banida por dois anos depois do teste positivo para meldonium; uma equipe de caiaque romena reprovou no exame antidoping, e está desqualificada até o resultado de investigações futuras; e o Comitê Olímpico Internacional anunciou que poderia banir até 31 atletas da competição porque o reteste de suas amostras coletadas nas Olimpíadas de Pequim (2008) indicou a presença de substâncias proibidas. Se essa tendência continuar, as Olimpíadas do Rio podem ser as olimpíadas com o menor número de delegações da história recente.

A Agência Mundial Antidoping (WADA — World Anti-Doping Agency) e a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF — International Association of Athletics Federations) tomaram uma decisão nunca vista antes: baniram toda a delegação de atletismo russa tendo em vista o doping recorrente. A WADA trabalha na premissa de responsabilidade objetiva, que significa que atletas são considerados culpados independente se sabem ou não que estão usando uma substância abolida.

No entanto, apesar dos esforços contínuos, a prática do doping persiste e parece estar tão consolidada no esporte de alto nível que nenhuma sanção, não importa quão severa, conseguirá erradicá-la.

Pesquisadores que estudam o doping no esporte identificaram uma série de fatores que explicam sua presença contínua. Muito deles podem ser resumidos como uma “matriz de resultado” que os atletas enfrentam no esporte profissional. De maneira simples, as recompensas — prêmio e dinheiro dos patrocinadores, recordes, fama etc. — continuam a superar o risco do doping, que não só inclui ser pego e punido, como também danos físicos ao atleta.

Muitos atletas decidem que os riscos valem a pena e continuam trocando problemas de saúde futuros por vantagem competitiva a curto prazo. O sistema de esporte profissional incentiva a quebra de recordes e uma performance superior através de prêmios, dinheiro de patrocinadores e manchetes na primeira página. Enquanto isso, escapar dessa matriz de resultado pode ser muito difícil para o atleta que quer competir em alto nível. Dados empíricos sugerem que os atletas frequentemente se dopam devido a uma pressão psicológica extrema: eles acham que não têm alternativa. Alex Zülle, por exemplo, um ex-ciclista profissional suíço, que competiu pela equipe Festina e cujo teste deu positivo para Eritropoetina (EPO) em 1998, disse:

"Todo mundo sabia que o pelotão inteiro estava usando drogas e eu tinha uma escolha. Ou eu me rendia e seguia o fluxo ou arrumava minhas coisas e voltava ao meu antigo emprego como pintor. Me arrependo de mentir, mas não poderia ter feito de outra maneira."

Por isso, enquanto escolher não participar do doping é teoricamente possível, na prática não é fácil. A escolha de não participar pode ser extremamente custosa para os atletas, já que pode significar desistir da competitividade, ou até deixar o profissão. Apesar da expressão “sem escolha” ser uma hipérbole, para esportistas que focaram por décadas todos os aspectos da vida no alto rendimento na sua modalidade, desistir ou competir apenas em um nível mais baixo pode não parecer uma opção.

Boatos de que a competição seria assim. E não tem vácuo no sprint final que resolveria.

Ultimamente, a persistência do doping — por indivíduos num caso isolado, ou por equipes inteiras como parte de um programa sistemático — significa que o esporte profissional nos dias de hoje raramente é — se é que já foi um dia — imaculado. Muitos atletas se tornaram nada mais que “porquinhos-da-índia” do sistema.

O que podemos fazer sobre isso?

Uma solução aparentemente simples seria legalizar o doping e fazê-lo parte do esporte. O filósofo e bioeticista Julian Savulescu já sugeriu isso, com a ressalva de que as drogas sejam usadas “sobre controle médico”. Seria permitido para os competidores usarem drogas de aumento de desempenho desde que fosse “seguro”, e o nível de segurança “deveria ser estipulado no mesmo nível em que permitimos atletas, como pessoas, assumirem riscos”.

Isso resolveria o problema da disseminação do doping nos esportes? Acho que não.

O sigilo é uma elemento importante para alcançar e manter uma vantagem competitiva em qualquer contexto, e para atletas profissionais a opção de “usar e ocultar” continuaria sendo a escolha racional se o doping fosse legalizado. É um exemplo clássico de um problema da Teoria dos Jogos em que as outras opções são “usar a droga abertamente”, “não usar e esconder” e “não usar abertamente”. Enquanto a matriz de resultado para o esporte profissional permanecer inalterada, liberar o doping não levaria a um “doping seguro” sob supervisão médica, mas sim a um sistema de dois níveis onde, a fim de manter a vantagem competitiva, atletas continuariam usando substâncias secretamente para melhorar o desempenho.

Eu defendo que a única maneira de tornar o esporte de alto nível sustentável é atingir a matriz financeira que a suporta e endossa.

Como podemos fazer isso? Podemos começar com a ideia de que os atletas não devem ser os únicos culpados (no sentido da responsabilidade) pelo doping. Na prática, isso significa mudar o método de responsabilidade objetiva da WADA. Para isso, primeiro precisamos de uma análise dos stakeholders para entender quais são as partes interessadas em cada equipe, atleta ou modalidade. A WADA poderia exigir que times ou atletas individuais e suas comitivas submetam algo semelhante a um gráfico organizacional clássico, mostrando quem dá satisfação para quem, quem paga quem e quem decide pelo outro.

O próximo passo seria designar a responsabilidade para a(s) parte(s) interessada(s) apropriadas. Aqui, pensamos que os indivíduos identificados na análise de stakeholder como os com mais poder ou controle sobre a “organização” deveriam ser pessoalmente responsabilizados pelo doping dos atletas sob seu controle. Mas é claro que reconhecemos que que cada atleta retém uma responsabilidade considerável sobre suas próprias ações, mesmo que sob coerção ou pressão psicológica. Então atletas que testam positivo para doping ainda devem ser excluídos da competição por um determinado período de tempo.

Designar responsabilidades para aqueles que exercem poder sobre o(s) atleta(s), comitiva ou equipe é viável: há regulamentos e leis em outros contextos que serviriam como modelo. Depois do escândalo da Enron de 2001, por exemplo, quando grandes companhias dos EUA mentiram a respeito de suas finanças, o Congresso estadunidense aprovou uma lei chamada Lei Sarbanes-Oxley, que faz com que os principais diretores de empresas de capital aberto sejam pessoalmente responsáveis por qualquer fraude financeira que qualquer funcionário cometa. Aplicando isso nos esportes, poderíamos antever um regulamento que tornasse o dono da equipe, o atleta individual (no caso em que ele ou ela fique no “topo do gráfico organizacional’), ou ainda o diretor da empresa patrocinadora responsável pelo contrato do patrocínio, pessoalmente responsável (i.e., responsável por pagar uma multa salgada) se qualquer membro da equipe, comitiva ou atleta seja descoberto violando alguma regra antidoping. Detalhes importantes precisariam ser trabalhados, como o tamanho da multa e a prevenção de processos e bodes expiatórios.

O problema do doping no esporte não está prestes a desaparecer. Legitimizar um doping seguro sob controle médico fará muito pouco para prevenir o uso clandestino de substâncias perigosas de aumento de desempenho. A única solução prática que podemos ver é ampliar a pesquisa dos culpados, não absolvendo a culpa dos competidores que fazem uso do doping, mas também reconhecer que aqueles que controlam a “matriz de resultados” têm pelo menos tanta responsabilidade pela corrupção do esporte quanto os próprios atletas.

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Nota da tradução: o texto foi originalmente publicado em inglês na Aeon, em associação com The London Health e Society Hub e gentilmente autorizado para tradução e republicação no Brasil pelo PapodeHomem.

O texto é de autoria de Silvia Camporesi e James Knuckles, editado em inglês por Nigel Warburton e traduzido para o português por Julia Barreto.

Silvia Camporesi é uma professora assistente em bioética e sociedade na King’s College de Londres, onde também é diretora do programa de mestrado. Ela se interessa por tecnologia genética em reprodução, ética e filosofia do esporte e turismo médico.

James Knuckles é um candidato de PhD na Cass Business School em Londres. Ele pesquisa modelos de negócios e  cadeias logísticas para a diminuição da pobreza em países subdesenvolvidos.


publicado em 07 de Agosto de 2016, 00:10
Silvia camporesi

Silvia Camporesi

É professora assistente em bioética e sociedade na King’s College de Londres, onde também é diretora do programa de mestrado. Se interessa por tecnologia genética em reprodução, ética e filosofia do esporte e turismo médico. Pode ser encontrada no Twitter, no Linkedin e no Site Próprio.


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