A tecnologia que liberta é a mesma que aprisiona

Semana passada, falei que a casa dos Jetsons é coisa do passado e descrevi diversas possibilidades de uma casa automatizada. Agora sigo a análise de uma perspectiva comportamental: será que tanta tecnologia vai alterar nossas melhores qualidades humanas?

As tarefas domésticas e nossa humanidade

Em muitas situações, a casa do futuro, criada para tornar nossa vida mais fácil e confortável, pode acabar se tornando umaassistente intrusiva e indesejada.

As tarefas domésticas – que as residências inteligentes se propõem a suprimir de nossas vidas – cumprem um papel essencial que determina como vivemos e quem somos hoje. Como já aprendemos com as meninas lobo, nós não nascemos humanosa priori. Nós nos fazemos humanos e construímos nossa humanidade a cada ação.

Sendo assim, será que todos nós realmente gostaríamos de passar o dia no sofá enquanto nossos sistemas de automação nos substituem em todos os aspectos da vida doméstica?

Os fardos da vida moderna constituem importantes atividades que unem e integram a família e os amigos. O casal que lava os pratos, o tio que ensina o moleque a trocar o chuveiro, a garota que limpa o quarto como forma de terapia...

tarefas-domesticas
Ah, as tarefas do lar...

Ou o que seria de um bom churrasco sem o tempo que a carne leva para ser preparada, o revezamento na função de cortar e servir, a colaboração para sair e trazer mais gelo?

Se bastasse uma pílula diária para nos alimentarmos, aposto que a humanidade não demoraria para transferir o ritual que hoje gira em torno da alimentação (comer junto foi uma das fundações do humano) para outros tipos de encontros.

Liberdade ou dependência?

Os sistemas simplificados de automação residenciais existentes limitam-se a disponibilizar belas e sofisticadas interfaces com as quais podemos acionar boa parte de nossos eletrodomésticos.

No entanto, como mencionado no artigo anterior, as soluções para as novos ambientes inteligentes tendem a dotar nossas residências com autonomia para tomada de decisões. Isto é, através da computação pervasiva, os novos ambientes serão capazes de se antecipar aos nossos desejos e tomar decisões sem que nem sequer percebamos sua interferência.

É ideal criamos uma tecnologia que se torne absolutamente indispensável em nossas vidas e, consequentemente, nos torne seus dependentes?

O que torna tudo isso possível são tecnologias como Mariá, V.I.K.I. (Virtual Interactive Kinetic Intelligence) e Skynet, sistemas computacionais capazes de aprender e se readaptar por meio de inteligência artificial.

Assim como ajudei a projetar Mariá para desenvolver as mais variadas emoções humanas ao longo de sua interação com o usuário, sistemas como VIKI também traçam nosso perfil e buscam estabelecer um padrão de nossos hábitos comportamentais.

São tecnologias criadas para aprender constantemente, aperfeiçoando cada vez mais sua função de antecipar nossos desejos. VIKI era um sistema tão autônomo que acabou assassinando seu criador e tentando escravizar a raça humana na trama do filme Eu, Robô.

Ensinamos máquinas e depois esquecemos como fazer

No futuro, só vai faltar aprender... a pensar e andar?

Ficção científica a parte, tecnologias "mágicas" que surgem diariamente, se propondo a resolver a maioria de nossos problemas, tendem a causar uma profunda dependência.

Como viveríamos hoje se repentinamente todos os telefones celulares fossem retirados de circulação? Como viveríamos após uma pane em nosso sistema de automação residencial 5 anos depois de termos delegado todas nossas atividades domésticas aos ambientes inteligentes?

É possível responder essa pergunta afirmando que simplesmente voltaríamos a lavar pratos, espanar o pó, preparar o café e retirar o lixo de casa. Contudo, lembre-se que, após a invenção do fósforo e do isqueiro, desaprendemos a criar o fogo a partir de gravetos. Inúmeros hábitos e conhecimentos, que um dia fizeram parte de nossa cultura, se perderam ao longo do tempo na medida em que deixamos de usá-los.

Há também aqueles que usam os argumentos da geração de nossos pais, pasmos diante do surgimento de comodidades "indispensáveis" como telefone sem fio e o controle remoto:

"Os moleques de hoje perderam a rusticidade necessária para trocar a resistência do chuveiro ou pregar um quadro na parede."

A vida além da automação

pirulito
Nenhuma pílula mágica da alimentação vai substituir um belo pirulito...

O medo que alguns pais, da geração das TVs sem cor e das transmissões da Rádio Esso, nutriam em relação ao avanço das comodidades modernas é o mesmo que desenvolvemos em relação a tecnologias inteligentes de automação. Ora, não vamos construir uma sociedade obesa ao criarmos luzes que se acendem sozinhas.

O obscuro cenário imaginado pelos evangelistas tecnológicos xiitas em relação a essa sociedade sedentária em surgimento é tão provável quanto a previsão de nossos pais de um mundo onde todos nós, usuários de iPhones e Twitter, seríamos incapazes de trocar uma lâmpada.

Como em qualquer aspecto de nosso comportamento, a tecnologia é uma ferramenta, não um estilo de vida.

Meu apartamento será sim capaz de acender luzes automaticamente – talvez para simular minha presença em casa e afugentar ladrões, pois nem sempre estarei lá apertando botões e emitindo comandos de voz.

Mas, sempre que possível, vou preferir estar na praia de bermuda, sem camisa, sem computador, sem celular, sem Twitter e bem longe da M.A.R.I.A..


publicado em 30 de Novembro de 2009, 05:01
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Rodrigo Almeida

Engenheiro, apaixonado pela vida e por qualquer coisa com um motor potente, nostálgico entusiasta de muitas daquelas boas coisas que já não mais se fazem como antigamente.


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