A última missão - A inacreditável parte 2

Cenas do último capítulo: Dr Health recebe uma paciente na emergência, com dor no cotovelo direito, déficit de extensão e acha que é mais uma tendinite.

A radiografia mostra uma deformidade antiga, que bloqueia os movimentos do cotovelo. Teoricamente, algo operável, por isso, foi encaminhada ao ambulatório.

Chegando lá, foi solicitada tomografia para melhor planejamento operatório, e durante a consulta, a paciente desabafa, dizendo que perdeu a mãe recentemente, e que no leito de morte, esta confessou: a lesão no cotovelo foi causada pelo próprio padrasto.

Com medo de que ele fosse preso, a mãe não procurou socorro médico.

Comovido, Dr Health, mesmo com planos para deixar a Medicina em segundo plano, resolve ajudar a pobre mulher.

Bom, este fato aconteceu em janeiro. Eu não fiz nenhum relato depois desta consulta porque simplesmente a paciente não havia mais me procurado.

Agora sei qual caminho seguir

A sua volta. Paga ou vai embora!

Enfim, eis que ela ressurge no último dia 4/4, e imediatamente eu a questionei sobre o seu sumiço.

Disse ela que o convênio que possuía, apesar de ser aceito na emergência do hospital, não era aceito no ambulatório, o que realmente acontece. Aliás, vocês vão me perguntar por que ela foi atendida no ambulatório quando da 2a consulta, mas é porque após um atendimento na emergência, o paciente tem direito a uma revisão gratuita no ambulatório, independente do convênio ser ou não aceito neste.

A partir daí, se o convênio não é aceito, só se pagar particular. E quando ela retornou com a tomografia, a funcionária do ambulatório a informou que ou ela pagava, ou não teria direito à consulta.

Ao questionar se ao menos poderia falar comigo, a funcionária não deixou, dizendo que eu estava ocupado.

Por causa disto, ela não pôde pegar comigo um laudo para uma perícia no INSS (eu havia dado 15 dias de repouso, e nesse caso, a perícia é obrigatória), e mesmo mostrando a tomografia, o perito não quis saber. Indeferido. E assim, ela teve que retornar ao trabalho e ainda perdeu os dias entre o fim do atestado e a perícia.

Antes que alguém comece a me xingar, eu não soube de nada disso, até porque ela não falou comigo em momento algum.

Fiquei sabendo no dia 4/4. Que aliás, foi fruto de uma tentativa desesperada da paciente em falar comigo. Desta vez ela pegou uma funcionária de bom humor, que veio me dizer que uma paciente havia pedido para falar com a minha pessoa, mas que o convênio não podia ser aceito.

Reconheci o nome na carteirinha e mandei fazer uma consulta de cortesia.

A consulta, complicada

Após me explicar os fatos acima, peguei a tomografia e, pensando na solução cirúrgica para o caso, avalei a viabilidade. A cabeça do rádio, por estar fora do lugar, fazia um batente contra o úmero, impedindo a extensão do cotovelo. Havia que se considerar outra coisa, após tomar ciência do caso, fiz uma revisão da literatura, e nesse tipo de caso, a cápsula que envolve a articulação sofre um certo tipo de retração, o que mesmo com a liberação cirúrgica capsular, pode comprometer o resultado.

Era um caso um pouco mais complicado do que eu imaginava.

A ligação do rádio com o úmero | Foto

Parentêses: {a Relação Trabalhista Doentia}

Em mais um episódio da guerra "trabalhador x empregador", no qual faço o papel de intermediário/ouvinte com uma certa frequência, a paciente me confessa que começou a ser perseguida pela chefe.

Perseguida; leia-se, uma manobra que os chefes usam para forçar o empregado a pedir demissão, ou seja, sobrecarregá-lo de trabalho, se ele está com tendinite ou algo do tipo, miná-lo, sacaneá-lo, e afins.

Cansado, o trabalhador pede para ser demitido, mas o empregador não o faz, porque se fizer, terá que pagar o FGTS.

O trabalhador, para não perder o FGTS, não quer pedir demissão, e nessa hora vai ao médico para tentar se encostar no INSS. A paciente fez isso, mas como não conseguiu falar comigo, o perito não concedeu benefício, o que para o empregador, é a "prova cabal" que o empregado está de sacanagem.

Relação doentia.

Chorando, a paciente me confessa que, por ser ignorante e quase analfabeta, havia assinado alguns documentos que mal sabia o que era.

Expliquei que, como o evento que causara a descompensação dos sintomas havia sido acidente de trabalho, existia a possibilidade do empregador não tê-la demitido por causa disso - acidentes de trabalho, dependendo do caso, geram 1 ano de estabilidade - mas que como provavelmente não houve emissão de CAT, era melhor ela se defender e procurar um advogado.

Aliás, essa relação doentia acaba atingindo até quem não tem nada a ver com isso. Estou falando de mim mesmo. Em minha clínica, recebi um paciente de uma empresa, e antes da consulta, a recepcionista veio falar comigo. Disse que os funcionários dessa empresa vão direto na clínica, e que o pessoal do RH já entrou em contato conosco, dizendo que nós damos muitos atestados para os pacientes, e que se isso continuar, eles vão nos denunciar perante o convênio.

Olha que situação, estou lá fazendo meu trabalho, e sou pressionado para não emitir atestado, pois se eu o fizer, corro o risco de fazer minha clínica ser descredenciada pelo convênio, causando prejuízo.

Os Correios já fizeram isso, mandando uma carta solicitando que seus conveniados emitam menos atestados. Por um lado eu tenho que ser justo com o paciente, por outro, eu posso causar prejuízo a mim e meus sócios. Não me sinto à vontade para condenar os colegas que simplesmente deixam de emitir atestados por isso, e o doente que se vire.

Complicado.

Voltando à paciente entre  cruz e a espada...

Por conta disso tudo, o braço dela estava com sintomas piorados. Muita dor, inclusive no ombro. Comecei a escrever um atestado de 15 dias, para enviá-la novamente ao INSS, e para solucionar o problema dela não poder ser atendida no ambulatório, resolvi quebrar o galho e fazer algo que faria a direção do hospital arrancar o meu fígado sem anestesia: fazer consulta de revisão na emergência.

O convênio dela dá direito a atendimento na emergência, onde eu também trabalho e a atendi pela 1a vez. Só que se você fizer consultas de revisão na emergência, os convênios usam de um artifício chamado GLOSA. Isto consiste em, se o paciente foi durante 3 semanas seguidas na emergência ser consultado, o convênio só vai pagar UMA consulta.

Ou seja, ele glosa duas consultas.

A glosa se fez necessária porque se o convênio pagasse tudo, o que teria de médico malandro querendo fazer revisão diária de paciente, não estaria no gibi, até porque a consulta emergencial é mais cara que a de ambulatório. Mas tem consequências, e uma delas é você não receber patavinas por consultas NECESSÁRIAS e JUSTAS de revisão.

Enfim, resolvi peitar e vou acompanhá-la na emergência, dane-se.

Estado de necessidade.

Você acha que tem problemas? Leia isso.

Se acha, está na hora de reavaliar seus conceitos, porque o real motivo de eu ter feito esse artigo vem agora.

Estava eu crente que a consulta havia acabado, quando a paciente começa a chorar novamente. E me conta o seguinte:

"Doutor, minha vida está muito complicada.
Perdi minha mãe, estou com esses problemas todos, sem receber, e o senhor acredita que minha filha de 4 anos foi atropelada na semana retrasada e teve a mão amputada?
O pneu do carro passou por cima da mão e esmagou tudo. Não sei mais o que fazer."

Mais uma vez o ogro se comovia.

Aos leitores da PdH, peço doações de sal grosso e arruda, porque a situação dessa mulher está crítica. Não obstante aquela história toda, e agora ainda mais essa bomba?

Ironia do destino, era o mesmo braço que a mãe tinha problema (esquerdo).

Isso também é um big problem | Foto

Concluindo: operar ou aposentá-la?

Agora estou em dúvida se vale a pena operar essa mulher ou não.

Pelos resultados agora incertos, depois da minha consulta literária, e também do jeito que ela anda com azar, acho até melhor evitar procedimentos invasivos. No creo en brujas, pero que las hay, las hay.

Minha "linha de conduta" agora é conseguir sua aposentadoria por invalidez. O que creio eu, tem embasamento, pois a deformidade no cotovelo dela é cristalina e incapacitante para o seu serviço atual (auxiliar de serviços gerais).

Por paradoxos criados pelo mercado de trabalho, se eu a operar, mesmo que resolva o problema, vai ficar alguma sequela residual e ela perde a justificativa anatômica para se aposentar. Vai acabar me culpando, mesmo eu tendo agido com a melhor das intenções. Com estas possibilidades, novamente questiono se vale a pena investir no tratamento operatório.

Outra coisa que tenho que ponderar é que, se eu a aposentar por invalidez, ela fatalmente vai deixar o emprego e com isso vai perder o seu convênio, ficando à mercê do SUS (medo, muito medo). Nesse caso, meu contato com ela pode se acabar, a não ser que eu faça mais cortesias e coloque minha cabeça à prêmio no hospital.

Complicadíssimo....

Dr Health, ansioso para ver a bomba que vai aparecer na próxima consulta, pelo andar da carruagem...


publicado em 08 de Abril de 2010, 14:02
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Mauricio Garcia

Flamenguista ortodoxo, toca bateria e ama cerveja e mulher (nessa ordem). Nas horas vagas, é médico e o nosso grande Dr. Health.


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