Armando o circo chamado churrasco

Mas então gurizada medonha, desta feita descreverei um churrasco básico, desses clássicos de domingo com a indefectível parentada e a parceria de fé.

Para inicio de conversa quero esclarecer aquela dúvida recorrente de que gaúcho é quem faz o melhor churrasco.

Acontece que o assado de carnes nas brasas tem origem aqui no grande Pampa, o que nos propicia incontáveis manadas bovinas e ovinas de experiência de como botar uma costela de gado europeu no fogo. Por acá, ninguém fica se exibindo, balaqueando que faz o aquele bobó de camarão, a moqueca perfeita, uma baita pizza ou uma feijoada melhor que qualquer boteco do Rio. Aqui não tem queijo de Minas, tucupi e dendê, acerola e pequi, e outras variedades de ingredientes e preparos desse enorme manancial brasileiro.

Portanto, o que se faz bem aqui é churrasco. Quando viajo, tem sempre alguém querendo me levar a uma churrascaria autêntica; peço perdão, mas em Minas como tutu de feijão e torresmo, na Bahia acarajé e vatapá, em Sampa quero um poltetone do Jardim de Napoli ou um sushi de verdade... Percebem?

Arte do autor

No meu humilde pensamento, entendo e respeito a culinária como um aspecto importante de cada cultura, que tem sempre na geografia um de seus pilares.

Levantando a lona

Um churras de fundamento começa no dia antecedente...Alinhavar os participantes por tema ou costumes, escolher o tipo de churrasco (assunto para depois) e as carnes que vão se apresentar no picadeiro, checar o depósito etílico e dar aquela vistoria detalhada na churrasqueira, facas, espetos, taboa e outros pertences.

Este roteiro, para umas 15 pessoas, inclui sugestão de escolha dos tipos de carne, preparo, fogo, salga, sequência e cuidados. Tudo detalhado. Vai por mim tchê, é tri barbada fazer um churrasco de primeira.

Existem aplicativos que fazem a conta da quantidade de carne por pessoa, mas tem de se levar em conta também o qualitativo, perfil dos felizardos. Se for para aquela parceria que manda ver sem dó ou compaixão, ou se vão vir tias, cunhadas sobrinhos que só beliscam e querem casquinha quando você está servindo um vazio pleno de sucos e sabores. Aí o espetáculo varia e o responsável técnico tem de estar ligado nas peculiaridades da plateia.

O padrão é de 500g de carne sem osso e 350g com osso por individuo, mas sempre é bom comprar uma porcentagem extra.

Outro porém é que às vezes a carne está perfeita e o assador inspirado e a turma de jejum há uma semana... Aí falta boia, por isso é melhor permitir do que prevaricar.

Salada de batatas e pãozinho com alho são bons para embuchar e tirar o paladar – sirva sempre junto com a carne. Para o antes fico com  azeitona, amendoim, queijos, sem muito tempero, além de que ficam ótimos com uma, ou duas, quem sabe três cervejas bem geladas.

Buenas, vamos aos números: uns dois quilos de linguiça, quatro a cinco quilos de costela de novilho e duas maminhas ou picanhas. Bota mais um saco de carvão de 5 quilos que é suficiente para essa quantidade.

Maquiando o palhaço

Se a carne estiver congelada, deixe em temperatura ambiente por cerca de 12 horas na parte inferior da frigidaire.

Carne mal descongelada no fogo é desastre certo. Não adianta achar que o calor vai terminar o descongelamento. O fogo cria na carne uma casca que impede o gelo de derreter e o resultado final são as famosas "molitas" (fêmea do tatu), uma casca grossa e dura por fora e o bicho vivo por dentro! Descongelar com água ou micro-ondas fatalmente afetará o sabor e a textura da carne.

A carne maturada embalada a vácuo deve ser aberta no mínimo 30 minutos antes de ir pro fogo, para tirar um cheirinho peculiar desse tipo de carne. Costumo passar essas carnes pela torneira para tirar aquele sangue escuro.

Colocar carne no leite, ou em outra substância para amaciar, é sacrilégio. Se a carne é dura não serve pra churrasco e ponto final.

Deixe o carvão já empilhado, mas só acenda o fogo quando chegar o primeiro parceiro, para não correr o risco de aprontar a carne antes de o povo chegar. Assador com horário, achando que é almoço, não se cria!

Olhe o sal brilhando em volta

Evite ficar mexendo no fogo. Movimente sempre na carne, levantando e baixando. Se faltar fogo, coloque alguns pedaços de carvão, com cuidado, por cima do braseiro, sem fazer polvadeira. Se as labaredas aparecerem, levante a grelha e os espetos, nada de jogar água e se apavorar. Da próxima vez bote menos carvão!

Fogo pronto e parelho, coloque as linguiças e carnes menores mais em baixo e as costelas, maminhas e picanhas no alto. Espete as linguiças ou coloque em grelha dupla.

Peça para o açougueiro cortar a costela em tiras de quatro dedos de largura, prefira a parte central da costela (janela, foto abaixo), espete em espetos simples. Asse as costelas com os ossos para baixo. Deixe os ossos branquearem, salgue e então vire a graxa para o fogo. Se for muito larga, deixe assar de lado também.

Uma grelha aberta sempre é uma boa parceira do assador – para linguicinhas, pãozinho, queijo, uma morcilha ou pimentão recheado – e ainda proporciona aquele stand by para as carnes maiores que aprontam enquanto não tem comedor!

A polêmica entre grelha (não deixa a carne perder o suco) e o espeto (permite posicionar a carne de qualquer lado) não deve ser levada à ponta de faca. Fundamental é a qualidade da carne e o trabalho com o fogo durante o assado.

Lembrar sempre de nunca deixar a carne salgada muito antes de botar no fogo: carne seca e salgada na certa! Deixe as carnes pegarem cor e calor antes de salgar: tire do fogo coloque sobre uma forma ou gamela e espalhe – sem exagero – sal grosso ou médio por toda a carne. Volte ao fogo e deixe branquear o sal.

Minduim metendo a faca numa janela

Respeitável público...

Enquanto a carne sofre a química dos eflúvios da quentura, é a hora do uisquinho, cachacinha ou caipira, quem sabe alguma cerveja "mofada". Cuidado com o excesso de beliscativos, senão o índio se apronta antes do churrasco. Quando a linguiça estiver dourada, coloque o pão para servir junto, dando início ao espetáculo.

Dê um tempo para o pessoal conversar, tomar mais uma, e ficar com fome de novo antes de tirar mais carne. Vá servindo aos poucos, na tábua, para não esfriar. Corte com aquela faca boa e afiada, pedaços pequenos ou médios, nada de tracanaços que são difíceis de cortar e que acabam esfriando.

Outra maneira de servir é se voluntariar (tu aí, chega mais!) um assistente de picadeiro para passar, em uma gamela ou forma de forno, as carnes cortadas em pedaços pequenos e médios ainda quentes, pela distinta plateia e já ir tirando a temperatura das vontades, veleidades e variedades.

Coloque a farinha de mandioca num canto da tábua ou numa cumbuqinha ao lado. Sou totalmente contra a farinha temperada, tão na moda. O sabor e cheiro de conservantes tiram toda a pureza da carne assada no capricho; é que nem botar catchup em pizza.

Intercale as bem passadas com as ao ponto e as mal passadas para não haver resmungação. Para os apreciadores de carne esturricada, explique que o nosso suco gástrico não dissolve bem o queimadinho, que nada mais é do que principio de carvão. Carne no ponto certo facilita a digestão e a saúde.

Costela tem de ser bem passada, a maminha e picanha devem ser cortadas quando estão rosadas e com caldo. Se a carne estiver "meio firmezita", corte em fatias bem finas para facilitar a mastigação e evitar a sacanagem do açougueiro.

Cuide do assado até o fim, mantendo as carnes quentes e sem ressecar. Recomenda-se deixar um pedaço para mais tarde, pois depois das saideiras sempre dá uma fominha, lembrando também do já tradicional carreteiro com sobras de churrasco.

Mas bah! Me lembrei de incluir algumas variações de cortes no roteiro. Pode-se trocar a maminha por fraldinha ou vazio. Se não conseguir costela, compre um belo pedaço de contra filé ou entrecot, inteiro ou em bifões. Lombinho também é legal, só costuma ficar meio seco. E se tem gurizada, sugiro, para entrada, coxinha da asa marinada no shoyu, sal e orégano. Vou deixar para me debruçar sobre a carne ovina em um outro texto.

Viste (como se diz por aqui), é a coisa mais fácil se fazer um belo assado. Carne escolhida a capricho, sempre com amigos na volta, sem horário e muita conversa fiada.

Falar nisso, quem quiser pode enviar sugestões de assuntos para serem debatidos na volta da tábua, de boca cheia, farinha no bigode e copo na mão.


publicado em 03 de Março de 2010, 13:30
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Luiz Minduim

Luiz Minduim é artista gráfico, professor, cozinheiro, assador bagual e balaqueiro dos bons! Mora em Pelotas, região do grande Pampa há mais de 30 anos, gaúcho por opção e coração.


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