As estranhas regras da solteirice moderna

A vida é um roteiro de sitcom ruim.

Eu sei que em tempos de crise falar de qualquer outra coisa parece futilidade, mas alguém precisa urgentemente chamar essa galeira solteira na casa dos 30 pra uma conversa séria.

Sabe que eu, solteira e saudável que sou, vez ou outra entro nuns papos com homens por aí. Não sei por que insisto nisso e não sei também se pra eles esses momentos são tão insuportáveis quanto pra mim.

Talvez a galera em relacionamentos estáveis não saiba, mas nesse mundo da solteirice moderna surgiram umas regras estranhas.

Decidiram, por exemplo, que não dá mais pra começar conversas com "oi, tudo bem?", porque é preciso ser criativo, sair do senso comum, inovar, puxar papo com tiradas incríveis e piadinhas muito bem pensadas, como se fôssemos todos nós personagens muito sagazes de alguma sitcom qualquer.

Aí decidiram também que não dá pra fazer muitas perguntas sobre a pessoa, o que ela faz, o que estuda, que tipo de música gosta, porque aí a conversa fica parecendo "entrevista de emprego". É o que dizem eles, ignorando o fato de que existe uma coisa que entrevistadores em seletivas de emprego e pessoas em conversas iniciais têm em comum: a vontade de conhecer a pessoa com quem estão falando, de forma que é bastante razoável que uma pessoa em qualquer uma das duas situações faça perguntas para, bom, conhecer a pessoa com quem está falando.

Ao mesmo tempo, o que eu acho mais grave, ignoram também que a grande diferença entre entrevistadores em seletivas e pessoas em primeiro encontro é que só em um desses grupos faz sentido a pessoa ter uma lista de requisitos que o outro deve atender.

Não, sua vida não vai ser uma reprise de friends.

Essas conversas, na dinâmica atual, precisam ser substituídas também por diálogos extraídos do roteiro criado pelo interlocutor para sua sitcom pessoal na qual, obviamente, ele é o personagem mais legal.

Esses personagens super legais já têm características bem definidas, gostos que nunca mudam, uma perfeita noção de si mesmos e – o mais importante – uma história já bem traçadinha. Tudo que eles precisam é encontrar os outros personagens para encaixar na história que eles querem contar.

Por isso, é preciso também desde o começo deixar tudo muito claro, os planos que tem, o que espera de um relacionamento, se quer um relacionamento ou não. É preciso saber se quer um relacionamento, de qual tipo e com qual intensidade. E gente, socorro, quem que sabe esse tipo de coisa?

Também decidiram que tem hora pra querer essas coisas, às vezes a pessoa até quer, mas não nessa temporada, você está atropelando o roteiro dela e tem que entender que não é assim.

Aí que primeiros encontros e primeiras conversas, assassinados por esse medo bizarro de não ser descolado e criativo o suficiente e tomados pelo pânico de não parecer uma entrevista de emprego, acabam parecendo, no fim, um teste de elenco.

Essa necessidade de ser o personagem bem sucedido / descolado / sagaz arruinou qualquer possibilidade de espontaneidade. Tudo é meio roteirizado. Do primeiro encontro ao sexo, nada é construído com quem está ali, com quem acabou de chegar.

Esses dias eu conversei com um cara que me perguntou se eu morava com meus pais, eu disse que não e devolvi a pergunta, mais por educação que por interesse – porque meio que tanto faz pra mim com quem as pessoas moram, mas uma habilidade essencial para conversas iniciais com pessoas dessa minha geração também é entender que quase sempre que uma pessoa pergunta de algum assunto para você, ela quer na verdade falar daquele assunto sobre ela – de forma que ela vai, em algum momento, responder a própria pergunta, mesmo que você não pergunte também.

Pois ele engrenou um discurso enorme de que morava com os pais por opção já que ele era um profissional muito bem sucedido e um homem independente, mas que gostava de planejar a vida e, quando saísse de casa, queria ter um cômodo só para os livros dele, que ele é muito ocupado, tangenciou no meio disso tudo a lista de requisitos que uma mulher precisa ter, mandou um "olha que legal" e mandou um link que, juro juradinho, era do perfil dele no linkedin, concluindo que ele odeia São Paulo mas que pretende se aposentar daqui uns anos com fundos imobiliários e outros ativos e viver de renda e que ele era um cara muito tímido que não gostava de sair de noite, que o que ele gosta mesmo é de ficar em casa e que as mulheres em geral não gostam desse perfil...

Aí as coisas vão ficando complicadas, sabe, porque não tem jeito fácil de dizer pra uma pessoa que se o problema dele fosse gostar de ficar em casa, tava fácil de resolver.

O problema é que ele, como a maioria das pessoas, é um péssimo roteirista da própria vida e ganharia muito mais se deixasse as coisas acontecerem com espaço pra improviso, contradições e construções coletivas, ao invés de viver esse personagem que, além de muito chato, fica testando quem aparece no caminho pra ver se a pessoa se encaixa no papel que ele já escreveu.

Eu sempre achei legal pra caramba conhecer gente nova, mas essa onda da galera descolada e bem resolvida com tiradas ótimas o tempo todo, cheia de certezas e com bem pouco interesse real em conhecer de verdade a pessoa com quem está interagindo tem matado aos poucos minha disposição e paciência.

Sabe, eu consegui bem cedo aceitar o fato de que eu não receberia minha cartinha de Hogwarts, acho que não é exigir demais querer que agora, nos 30, todo mundo aceite que a vida não é mesmo uma temporada de Friends, que as pessoas são mais complexas que isso, e que ainda bem que é assim.  


publicado em 18 de Outubro de 2019, 10:46
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Paula Bernardelli

É advogada, mas gosta mesmo é de gente, de política e de cachorro.


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