Como controlei meu pânico e consegui andar de avião

“A tristeza faz você ver outras coisas que a alegria não te deixa ver”, Hélio Leites.

“Um povo que concebe a vida exclusivamente como busca da felicidade só pode ser cronicamente feliz”

Marshal Sahlins

Comecei a escrever esse texto, em 2014, a bordo de um avião que saía de São Paulo com destino ao Rio de Janeiro. Meu intuito era dar uma entrevista para a rede Globo a respeito da minha pesquisa sobre a felicidade. Parece uma vitória boa, né? Ou então uma tremenda arrogância por efêmeros 15 minutos de fama. Mas quem não me conhece de perto não sabe o tamanho dessa vitória. E eu não estou falando sobre a aparição na televisão. É que eu passei anos sem conseguir entrar num avião e com dificuldade de fazer coisas simples como andar de metrô, atravessar a Avenida Paulista ou ficar tranquilo em um carro que rodasse por uma estrada. Por muitos anos, eu sentia diariamente meu coração doendo e achava que estava morrendo. Tudo isso começou na primeira vez em que voei. Foi lá que conheci uma companheira de muitos anos – a síndrome de pânico.

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Quando eu estava na faculdade, imaginava que só conseguiria voar de avião se minha vida passasse por uma grande mudança, tipo virar jogador de futebol (zero chances devido a minha completa falta de coordenação motora) ou me tornar um escritor famoso. Andar de avião me parecia coisa de ricaços que passavam férias nas Suíça esquiando. Mesmo que eu fosse viajar para o Rio ou BH algum dia, eu deveria fazê-lo de ônibus, de preferência numa excursão da Unesp para algum encontro de estudantes. Lá no interior onde me criei, até no colégio particular em que eu era bolsista, eram raras as viagens de avião do pessoal. Minha cidade não tinha aeroporto e ficávamos longe demais das capitais.

Foi então que, em 2003, a generosidade da minha tia Dora mudou minha vida. Essa irmã da minha mãe, que se casara com um americano muitos anos antes, me convidou para estudar 2 meses de inglês nos EUA com tudo pago, morando na sua casa, localizada nos arredores de Washington. Aquilo era incrível! Eu iria conhecer outro país, andar de avião e ainda melhorar meu macarrônico inglês. Engoli todos meus preconceitos esquerdistas anti-yankees e me empolguei para conhecer o país que tinha parido o punk rock, a literatura beat, os quadrinhos de super-heróis e os filmes do Tarantino.

No aeroporto de Guarulhos, eu e meu primo Joe, um americano anarquista, esperávamos falantes nosso vôo. Era uma das primeiras vezes que conversávamos tanto e descobríamos que tínhamos muito em comum. Faltava pouco para o embarque, quando ele lançou sua pergunta:

_Cara, você tem medo de voar?

2013, o ano em que mais viajei na vida

“Medo de voar?” Por que eu deveria ter? Avião não era tipo um busão tunado que rodava as nuvens, no lugar das estradas decoradas por canaviais do noroeste paulista? Por que aquele meu primo cosmopolita e viajante, que já tinha morado em uns 4 ou 5 países diferentes, parecia preocupado? Aquela pergunta se instalou na minha cabeça neurótica e ficou correndo de um lado para o outro como um hamster anfetaminado preso em uma labirinto de laboratório. Para ler no vôo até Washington, eu tinha levado um livrinho ˜leve˜  (“Totem e Tabu”, do Freud) que, entre outros temas amenos, debate a origem do tabu do incesto.

Joe dormia tranquilo, quando o avião começou a cachoalhar. Às vezes a aeronave parecia fazer pequenas quedas. Com a turbulência persistente, algumas pessoas começaram a se preocupar, um bebê se esgoelou e a porta de um dos maleiros se abriu. Minhas mãos suavam e meu peito formigava de leve. Era  possível que aquele avião caísse?  Era possível que eu morresse ali, 19 anos, sem nunca ter saído do Brasil, sem nunca ter vivido um grande amor, sem nunca ter escrito um livrinho sequer? Meu pânico aumentou quando meu primo acordou perguntando enérgico:

_Nós vamos morrer, cara?

Logo a turbulência passou, mas o medo resolveu ficar. Não preguei o olho nas próximas 7 horas de viagem, checava a todo o tempo a altitude do avião e me concentrava em cada barulho estranho que ouvíamos lá dentro. Tentava controlar o incontrolável. Aquele vôo foi a pior viagem da minha vida. E nos divertidos dias que passei nos EUA, não houve uma noite em que eu não pensassem na viagem de volta. Minha mente ansiosa fantasiava um futuro apocalíptico em vez de vivenciar o prazer do instante presente. Paralelo a essa incapacidade de me ancorar no aqui e agora, eu havia descoberto que a morte é uma possibilidade real, incontrolável e sem data para acontecer. Parece óbvio, mas há grande diferença entre sentir e pensar.

Minha viagem de 2013

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Em 2005, eu estava preocupado com o fim da faculdade. Meu estágio estava acabando, meu namoro tinha implodido e eu não sabia qual seria o próximo passo da minha jovem vida. Meus pais me pressionavam e diziam que se eu não arrumasse um emprego logo teria que voltar para a casa deles, na pequena Penápolis. No final de semana, me meti numa incursão para Ilha Solteira. Enchi a cara de pinga com Fanta e outras milongas mais e sentei no banco do busão, enquanto atravessava o noroeste. Minha mão começou, então, a suar, meu corpo todo formigava e eu sentia uma pressão angustiante no peito. Eu tinha dificuldade para engolir, como se minha garganta se fechasse sozinha. Com o coração acelerado, eu achava que estava enfartando ou tendo um AVC.

Depois daquilo, a sensação de proximidade da morte passou a me acompanhar. Amigos me levaram ao hospital duas vezes, mas meu coração estava perfeito. Fiz todos os exames  que o médico pedira e nada. Eu tremia, tinha dores no peito e tudo aquilo me deixava deprimido. Não conseguia descobrir meu problema. Até que uma colega psicóloga me explicou que eu estava tendo síndrome de pânico – a doença não estava no corpo, mas na mente. Como achava que terapia era coisa de louco ou de rico, desisti de lutar contra o pânico e comemorei o fato de ter passado no Curso Abril de Jornalismo que me levaria a SP e resolveria, por hora, a questão do (des)emprego.

O tamanho de São Paulo me intimidava. Naquelas avenidas largas e cheias de carros velozes, eu me sentia pequeno e fraco. Meus ataques de pânico começaram a ficar mais frequentes. Eu tinha dificuldade para segurar a xícara de café  depois do almoço, de esperar o metrô na plataforma, de caminhar por avenidas movimentadas. Atravessar um pontilhão era um martírio. Eu olhava para baixo e parecia que iria cair, atraído magneticamente pelo chão, em vertigem. Andar de avião era o pior dos obstáculos.

Eu namorava, na época, uma gaúcha e para visitar sua família cheguei a andar 16 horas de ônibus, me recusando a entrar numa aeronave. Passei uns 3 anos assim, comentando o sofrimento com poucos e bons amigos. Além do esforço de enfrentar o pânico, existia todo um outro esforço de tentar disfarçar dos colegas de trabalho, familiares e camaradas aquela angústia. Ser estigmatizado como louco, fraco ou doente era quase tão aterrorizador quanto andar de avião. E, em muitos círculos que frequentei, doenças psiquiátricas eram vistas como mera frescura.

2008 foi o ponto baixo da minha vida. Uma névoa de mal-estar parecia me rodear. Eu estava trabalhando demais (inclusive virando noites e perdendo finais de semana), minha avó morreu e eu passei por diversos problemas pessoais. Quando as coisas pareciam insuportáveis, uma amiga comentou que estava fazendo terapia e adorando. Peguei o telefone da sua psicóloga, fiz as contas de quanto teria que desembolsar todo mês e fui até um consultório junguiano na zona oeste paulistana. Começar a visitar um analista, uma vez por semana, foi uma das coisas mais importantes da minha vida. Uma pequena revolução pessoal que foi aos poucos tirando as rochas do peito que me impediam de levantar da cama. Lenta e dolorosamente, fui chutando as pedras do caminho. Em 2009, me convidaram para palestrar em um congresso de jornalismo na UFSC e eu fui. Cheguei a cogitar pedir para ir de ônibus, mas acabei encarando o avião. A exposição ao pânico funcionou dessa vez. Em 2011, eu voltaria a fazer uma viagem internacional, que abriria portas para que eu morasse na Alemanha (quem diria), em 2013. A luta contra o pânico foi lenta e muito pessoal. O apoio de pessoas próximas que passaram por situações parecidas ajudou; desabafar diminui o tamanho do monstro e faz com que você se sinta mais normal. A terapia, no meu caso, foi fundamental. Hoje, a síndrome cotidiana é uma lembrança distante. Pequenas vitórias, como caminhar pela Avenida Paulista no domingo, são difíceis de explicar para quem não passou por algo parecido. Ainda tenho dificuldade de andar de avião, mas não deixo de fazer coisas importantes por causa disso. Anos depois desse período turbulento, quando me dispus a investigar e entender a felicidade no Glück Project, muita gente queria saber o motivo ou me criticava como se a busca pela felicidade fosse algo menor, uma frescura de gente mimada. Só quem teve momentos de profunda infelicidade sabe a importância de temperar a vida com alegria.

Felizes dos que acham que sua vida plena é algo tão banal que não precisa ser comemorado.

Pra quem chegou até o final desse post, um prêmio para descontrair um pouco o papo sério:

 

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Esse post foi originalmente publicado em Glück Project, que completa, em outubro de 2016, três anos. Para comemorar a data e encerrar o projeto, vão rolar 3 posts. Este é o primeiro deles. Em breve o “Minimanual científico e sentimental para uma vida mais feliz”

 


publicado em 14 de Outubro de 2016, 17:00
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Fred Di Giacomo

Fred Di Giacomo é escritor e jornalista multimídia; criador do Glück Project – uma investigação sobre a felicidade; autor do livro “Canções para ninar adultos” e criador de newsgames como Science Kombat. Nas horas vagas, toca baixo na Bedibê.


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