Como é ser a pessoa gorda ao seu lado?

Para alguns, viajar é sinônimo de animação, pra outros é só desespero.

Tem sido tempos de viagens no PapodeHomem.

O Jader acabou de voltar da Alemanha. O Amuri está nos lendo da Tailândia. O Guilherme viajou semana passada pra Espanha. Eu devo estar partindo no mês que vem também pra Europa. Já o Luciano e a Higa vão passar o fim do ano um pouquinho mais perto, em Belém mesmo. Por isso, naturalmente, nossas viagens têm sido assunto recorrente nos bastidores.

Como acontece com certa frequência porém, nossas conversas acabam virando pautas e foi assim que encontramos e decidimos traduzir o texto a seguir.

Este artigo de autoria quase anônima foi publicado originalmente em inglês no canal Your Future Travel e revela alguns dos nossos fantasmas sob a perspectiva direta, ácida e impactante de alguém que simplesmente é gordo e tem que viajar.

A tradução é de Julia Barreto. Viaje e caia na real.

Como é ser a pessoa gorda sentada ao seu lado?

Minha respiração imediatamente se acelera quando a ligação acontece. É o chefe do meu chefe, me dizendo que há uma reunião importante em outra cidade. Ou talvez seja um amigo, me convidando para o seu casamento na Califórnia. Às vezes, é um membro da família cuja saúde não está boa, e chegou a hora de dizer adeus.

As notícias são intensas — é um momento de alta pressão para o meu trabalho, amigo ou família. Meu coração está batendo forte e minha respiração está acelerada. Fecho meus olhos, sinto meus pés no chão e a respiração na garganta, tentando desesperadamente evitar um ataque de pânico de força máxima no trabalho.

Vou ter que entrar num avião. E sou gorda.

Há uma caricatura comum dessa situação, frequentemente mostrada na TV, em ilustrações, em conversas irritadas. Pessoas gordas aparecem em aviões o tempo todo: barulhentas, repulsivas, cotovelando as pessoas, invadindo seu espaço, deixando cair Doritos em nós mesmos e em você, nossa própria existência planejada para te tornar miserável.

Essa caricatura não só machuca quando a vejo, eu desmorono sob o seu peso. Sou uma mulher confiante com amigos incríveis, como você, e um trabalho fantástico. Mas quando vejo essa imagem do que esperam que eu seja, entro em colapso, afundando rapidamente numa onda de depressão e exclusão. Ela não pode ser mais diferente da minha experiência.

Tanta coisa acontece antes de eu comprar a passagem. Pesquiso os termos de cada companhia aérea, porque todas elas possuem um item para “passageiros de peso”. Todas incluem a possibilidade de eu ser cobrada em dobro, ou de me negarem um assento no dia da viagem, e eu ter que explicar para o meu chefe, amigo ou familiares porque eles não irão me ver essa semana.

A companhia Southwest, num caso famoso, deixou o cineasta Kevin Smith embarcar e depois teve que o escoltar — publicamente — para fora do avião por parecer gordo demais para o seu lugar. A United impedirá seu embarque a não ser que você compre uma passagem adicional no dia, e quem tem 600 dólares sobrando? Eu checo os preços da primeira classe, onde os assentos são levemente maiores e os riscos de reclamações de outros passageiros são menores. Mil dólares. Sigo em frente.

A JetBlue não tem uma política — o que significa que ela é a mais precária de todas. Lembro da minha última viagem na JetBlue, quando um passageiro reclamou em voz alta para uma aeromoça quando sentei ao seu lado, sobre como não poderiam esperar que ele viajasse dessa maneira. A aeromoça o passou para outro lugar, trocando-o com outro passageiro. Ela não fez contato visual comigo o voo todo. Nem as outras pessoas da minha fileira. Eu era tão grande, e tão invisível. Isso poderia acontecer de novo. Tento segurar as lágrimas.

A ansiedade não diminui uma vez que a passagem é comprada — ela destila, se intensificando por semanas até a hora do voo. Penso em como eliminar qualquer outro fator estressante. As pessoas odeiam quando alguém demora muito para colocar sua bagagem no compartimento de cima. Pago para despachar a bagagem, para que os outros passageiros não tenham nenhuma razão adicional para reclamar sobre mim.

Pratico como vou sentar no avião, empurrando meu corpo contra a parede da cabine, um braço segurando o outro firmemente sob o meu peito, para que não haja nenhum contato físico com a pessoa sentada do meu lado. Levo balas, assim não vou precisar de nada para beber e a aeromoça não vai precisar se esticar para alcançar a pessoa gorda. Pesquiso se os aeroportos que irei tem o histórico de confiscar extensores de cintos de segurança. Se levar o meu, vou ser poupada do ficar na mira do holofote ao pedir um para a aeromoça.

Nos dias antes do voo, meus amigos me dizem que pareço distante. Alguns dos mais próximos sabem o que significa para mim subir num avião. Eles ficam quietos, incertos do que falar ou fazer. Na noite antes da viagem, minha melhor amiga e eu vamos beber num bar da região. Normalmente, falamos alto, rimos escandalosamente e fazemos amizade com outros clientes no bar. Hoje, não falamos muito. Nossas horas felizes passam rapidamente e voltamos para casa em silêncio.

Não durmo naquela noite. À 1h30 da madrugada, penso em tudo que estou fazendo para ficar saudável. Mês passado minha médica disse que minha pressão arterial estava boa, e que eu tinha uma rotina de exercício mais saudável do que a maioria de seus pacientes. Ele não sabia porque eu ainda era gorda. Nem eu. Por quase uma semana depois, me senti inexplicavelmente triste. Às 3h, fantasio sobre o que poderia acontecer para me poupar da humilhação que está destinada a acontecer. Talvez se eu usar duas camadas de Spanx (uma cinta modeladora), que coçam e machucam. Talvez se surgir uma nevasca inesperada. Talvez se eu começar a vomitar.

Então, de manhã, o aeroporto. A atrapalhação nervosa na segurança. O encostar desconfortável na parede esperando o embarque. Analisar o rosto dos outros passageiros. Quem é amigável? Quem mais é gordo? Seus rostos possuem rugas de preocupação e sofrimento? O meu possui?. Corro para o banheiro, me tranco no box, e tento não vomitar.

O embarque começa. Estou no começo da fila, não porque sou impaciente, mas porque escolhi um assento na janela e quero sentar antes que todo mundo da minha fileira. Se tenho que passar por alguém, irei ouvir o familiar e ofensivo suspiro desdenhoso. O pigarro, o gemido abafado. Esses são os sons quando meu corpo é visto em público.

Entro no avião, sento no meu lugar, fixo meu olhar no compartimento inferior de bagagem e evito interagir com qualquer um a não ser que me abordem primeiro. Cruzo meus braços e meus tornozelos, tornando meu corpo gordo o menor possível. Eu observei cuidadosamente o que faz outros passageiros perderem a paciência, revirar os olhos, reclamar com a equipe. Para mim, essas são regras invioláveis.

Alguém mexe no celular enquanto passa. Me lembro dos incontáveis vídeos no youtube filmados furtivamente de passageiros gordos em aviões, com títulos como “Pessoas Obesas Gordas Nojentas em aviões sobrepeso” e “homem gordo babando em avião, dormindo, roncando, babando” e “EXPULSEM GORDOS FOLGADOS E NOJENTOS”. Encolho ainda mais, desempenhando meu papel de pessoa calma da melhor maneira possível. Não há nada para ver aqui. Siga em frente.

Quando o avião decola, me dou conta que fiz algo aterrorizante, impossível e ordinário — embarquei num avião. Dessa vez, não vou ter que pagar por uma segunda cadeira, segurar as lágrimas ou ser escoltada para fora. Chegarei.

Entendo porque o restante dos passageiros estão no limite. Todo mundo fica desconfortável em aviões. Eles são planejados para levar o maior número de pessoas possível — o que não implica em assentos confortáveis para ninguém. Voar é custoso, desconfortável e estressante. Malas ficam pesadas, voos são cancelados, relacionamentos ficam tensos. Ninguém, aparentemente, está se divertindo. E no topo de todo o estresse — embarcando no avião —, a pessoa que eles veem sou eu. Ao invés de ser um compatriota, preso na mesma situação frustrante e desconfortável, me torno um bode expiatório para toda a frustração. Me torno o outro.

Nesse sentido, viagens aéreas são tristemente familiares, uma pequena amostra do que acontece tão frequentemente com pessoas gordas. Eu sou vista — e julgada intensamente— enquanto tento — e falho — caber num espaço feito para outra pessoa. Sou sempre grande demais, sempre demais, sempre inaceitável. Preciso me tornar cada vez menor, reduzindo e reduzindo infinitamente, com meu corpo teimoso resistindo todas as vezes. Mesmo assim, nunca sou pequena o suficiente para deixar os outros confortáveis.

Antes que o avião aterrise, começo a pensar no voo da volta. Tento estar presente com os meus amigos e minha família, tento me preparar para a minha reunião de trabalho. Uso todas as técnicas que tenho para controlar minha ansiedade, meu coração batendo que nem um beija-flor e respiração rasa e os ombros tentos. Mesmo assim, eu não consigo dormir bem por dias. E lá vamos nós outra vez.

Gostou desse post? Há mais como esse, incluindo Uma carta de amor do seu amigo gordo, Seu amigo gordo quer falar sobre gordofobia e A liberação divina de me chamar de gordo.


publicado em 23 de Outubro de 2016, 00:05
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Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


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