Como pode dinheiro simplesmente desaparecer?

Nota do editor: o texto a seguir surgiu no Reddit, como resposta a um tópico na seção de finanças. A pessoa que iniciou o tópico queria uma explicação fácil – "me explique como se eu tivesse cinco anos" – para uma questão complicada: como pode haver notícias sobre dinheiro "desaparecendo" graças às crises financeiras, como se fosse um recurso natural, se as pessoas continuam comprando coisas, ganhando seus salários, se taxas e impostos continuam sendo cobrados e multas continuam sendo pagas?

O usuário otherwiseyep resolveu dar uma explicação extremamente abrangente e acessível, respondendo não apenas como o dinheiro pode desaparecer, mas também dando uma bela noção sobre como ele surgiu e funciona. 

Achamos tão boa que resolvemos traduzir e compartilhar com vocês.

* * *

É difícil explicar isso para uma criança de cinco anos, porque envolve alguns conceitos bem abstratos, mas lá vai.

Dinheiro
Há uma longa e interessante história até chegarmos aqui

Todo "dinheiro" não passa de débito. Todo ele mesmo, incluindo ouro monetário etc. (Não discuta comigo ainda, eu chego lá.)

Imagine um mundo de mentira sem dinheiro, algum tipo de vila primitiva ou algo assim. Agora vamos inventar dinheiro de papel. Você não pode simplesmente imprimir um monte de papel que diz que as pessoas têm que te dar coisas em troca dele. Ninguém honraria isso. Mas você pode imprimir vales. Vamos detalhar isso...


  • Imagine que você é um plantador de maçãs e eu sou um caçador. Você quer carne, mas não fez sua colheita ainda. Você me diz "ei, vá caçar um pouco de carne para mim, e eu te dou 1/10 da minha colheita de maçãs no outono". Justo. Eu te dou carne, você me deve maçãs. Provavelmente tem bastante disso acontecendo na vila, além de trocas normais. Com o tempo, um padrão de "preços" começa a surgir. Uma coxa de veado vale uma cesta de maçãs, ou algo assim.

  • Digamos que uma semana depois eu decido que o meu filho precisa de um novo par de calçados mais do que eu preciso de uma cesta de maçãs. Eu volto a você e falo "ei, lembra daquela cesta de maçãs que você me deve? Será que você poderia escrever um vale que alguém possa trocar por uma cesta de maçãs, para que eu possa dar ao sapateiro em troca de um calçado?" Você me diz que tudo bem, e nesse momento nós inventamos um vale transferível, algo que é bem parecido com dinheiro.

  • Com o tempo, a nossa vila começa a sacar que um vale trocável por uma cesta de maçãs pode ser trocado por todo tipo de coisa. O pescador que não gosta de maçãs vai aceitar os vales em troca de peixe porque ele sabe que depois vai poder trocá-los com cara que conserta barcos. Com o tempo, você pode até começar a contratar pessoas para o seu pomar sem dar nada além de notas prometendo uma parte da colheita futura.

Agora estamos instituindo certificados de débito: uma promessa de fornecer maçãs. O "dinheiro" é um vale transferível – os seus empregados ganham uma promessa de que você vai recompensá-los de acordo com o valor de um dia de trabalho no pomar, ou algo assim, e isso é transferível. Ou seja, eles podem usar para comprar o que quiserem. O empregado recebe um peixe do pescador, não em troca de algum trabalho realizado ou de algo físico que ele possa usar, mas em troca de um vale que o pescador pode resgatar onde quiser.

Troca

Tudo bem até agora. Mas há uma ou duas bifurcações aqui, no caminho que leva até um sistema monetário realista, que vamos discutir separadamente:


  • O que acontece se o seu pomar for destruído em uma queimada? Subitamente, todos os vales que todo mundo tem usado como moeda de troca são apagados. O valor deles não "foi" para lugar nenhum, ele simplesmente some, não existe mais. Um valor real foi genuinamente destruído. Não há nenhuma lei termodinâmica de conservação de valor monetário – assim como eu e você o criamos ao criar um débito transferível, ele também pode ser genuinamente destruído. (Vamos voltar a falar disso em um minuto, fica bem interessante.)

  • A segunda questão é que, muito provavelmente, o vilarejo inteiro não esteja trocando apenas vales-maçãs. Eu também poderia emitir vales que prometeriam um corte de carne das minhas caçadas, o pescador poderia emitir vales-peixes e assim por diante. Isso poderia virar uma bagunça, especialmente se você tiver a ideia de emitir mais vales-maçãs do que você vai colher: você poderia comprar todo tipo de coisa com um débito auto-instituído que você nunca conseguiria pagar, e o vilarejo nunca saberia disso antes da colheita. Novamente, temos um valor que foi simplesmente "destruído". Pessoas trabalharam e fizeram coisas e te deram coisas em troca de algo que não existe e nunca existirá. Todas as coisas que elas fizeram se foram, você as consumiu, e não há nada no lugar.

As duas preocupações acima provavelmente se manifestarão no seu vilarejo mais cedo ou mais tarde, provavelmente cedo. Isso leva à questão do crédito, que é, em seu significado mais básico, uma medida de credibilidade. Toda vez que você emite um vale-maçã, você está pegando emprestado, com uma promessa de pagar com futuras colheitas de maçã.

Depois de um ou dois escândalos no vilarejo, as pessoas vão começar a prestar mais atenção na credibilidade de quem está emitindo os vales. Digamos que o plantador de batatas da vila bole um esquema no qual os seus vales-batatas são emitidos por algum terceiro que seja considerado confiável – o padre, digamos. Ele começa cada temporada de plantação com um livro de certificados numerados igual à colheita típica, nenhum a mais do que isso, e mantém metade dos certificados em arquivo, emitindo a outra metade.

Agora temos uma trilha de auditoria e um sistema bem confiável, que provavelmente dará ao plantador de batatas bastante crédito em comparação com outros fazendeiros e agricultores da região. Isso significa que o plantador de batatas pode emitir mais notas, e a um valor de troca maior do que as emitidas por outros sistemas menos confiáveis. O bêbado da cidade provavelmente não verá os seus vale-cachaça com muito valor na praça.

Agora nós temos emergindo algo como um mercado de crédito, e o plantador de batatas está emitindo algo similar a uma "carta de fiança" moderna...


  • Passa-se algum tempo e as pessoas começam a sacar esse sistema de avaliação de crédito, e os fazendeiros e pescadores e todo mundo começa a entender que eles também podem derivar mais valor dos seus vales se demonstrarem credibilidade. Pessoas com uma reputação não tão boa podem não se ver capazes de "emitir dinheiro", a não ser talvez com "juros" muito altos. Por exemplo, um fazendeiro novo, sem nenhum histórico, pode ter que me prometer o dobro de batatas em troca de uma coxa de veado, graças ao risco de que eu não vá ver batata alguma.

  • Isso obviamente vai virar bagunça bem rápido, já que diferentes vales de maçãs e batatas têm valores diferentes dependendo de quem está os emitindo, e todos têm que ficar de olho nas avaliações de crédito de cada um.

  • Alguém com senso empreendedor, talvez o mercador que coordena o posto de trocas, tem a ideia de emitir apenas um tipo de nota para todas as fazendas do vilarejo. Ele faz uma reunião com todos os fazendeiros e propõe que o padre mantenha um livro de certificados, ou algo assim, e todos os fazendeiros ganham notas como todos os outros em troca das contribuições em forma de colheita. O mercador, por sua vez, fica com uma fração das colheitas, que ele vai usar para contratar contadores e supervisores de fazenda que vão estimar as colheitas de todos os fazendeiros.

  • Todos concordam (ou ao menos concordam fazendeiros o suficiente para formar uma maioria que essencialmente tiraria da economia do vilarejo qualquer outro fazendeiro que não concordasse com o sistema), então agora temos algo parecido com um banco central emitindo moeda corrente: isso é, uma moeda cujo valor é "decidido" por alguma autoridade central, ao contrário de um certificado de troca direta que pode ser trocado por uma maçã de quem o emitiu, por exemplo.

  • Agora nós temos algo que se parece com um sistema monetário moderno. A vila pode ter comitês de auditoria, ou algo assim, mas a ideia é que há uma autoridade central cuja tarefa é a de emitir dinheiro e regular o suprimento desse dinheiro de acordo com o tamanho estimado das atividades econômicas atuais e futuras (as próximas colheitas).

  • Se eles emitirem dinheiro demais, nós temos inflação, quando são emitidos mais vales-maçãs do que maçãs são colhidas, e cada vale acaba valendo apenas três quartos de uma maçã na hora da colheita.

  • Se emitirem dinheiro de menos, a atividade econômica é reprimida sem razão: os fazendeiros não conseguem contratar empregados o suficiente para maximizar suas colheitas, então o caçador começa a caçar menos porque a sua carne está estragando já que ninguém tem dinheiro para comprá-la, e assim por diante.


Pomar de dinheiro

"Mas por que diacho inventar toda essa complexidade só para trocar maçãs por carne ou sapatos? Não é trabalho demais?"

Porque este é um sistema muito mais eficiente do que trocas puras. Eu, como caçador, não preciso mais trocar fisicamente uma coxa de veado por uma cesta de maçãs e depois ir com a cesta até o sapateiro para trocar por um calçado. Você, como um plantador de maçãs, pode contratar trabalhadores antes da colheita, e assim pode plantar e colher mais, e os seus empregados podem comer o ano inteiro em vez de simplesmente ganharem uma montanha de maçãs na hora da colheita e terem que se virar para trocar aquelas maçãs por coisas que precisarão até a próxima colheita.

Voltando ao dinheiro...

É preciso lembrar que, no decorrer de todo esse processo, desde a troca inicial até esse sistema de banco central, todo este dinheiro é débito. É tudo certificado de "eu devo isso a você", exceto que em vez de ser um certificado que diz "Fulano vai dar uma cesta de maçãs ao portador deste vale em Outubro", é um que diz "Qualquer um na cidade vai te dar em troca disso qualquer coisa que valha o mesmo que uma cesta de maçãs".

O dinheiro não é uma coisa real que você possa comer, vestir ou usar para construir uma casa, é um certificado de débito que é resgatável em qualquer lugar, para qualquer coisa, com qualquer pessoa. É uma promessa de pagamento de valor equivalente em algum momento no futuro, exceto pelo fato de que o portador do dinheiro pode ir a qualquer outra pessoa resgatar esse pagamento de igual valor – ele não precisa ir até quem originalmente lhe emitiu o débito.

É aqui que a coisa começa a ficar interessante de verdade, e onde podemos começar a responder à sua pergunta.

(Apenas por questão de simplicidade, vamos parar de chamar essas notas de "vales-maçãs" e fazer de conta que a vila decidiu chamá-las de "Lerais".)


  • Então você ainda está plantando maçãs, mas em vez de trocá-las por coxas de veado e calçados, você as troca por Lerais. Até aqui, tudo bem.

  • De novo, você quer um pouco de carne, mas a época de colheita ainda não chegou, então você não tem nenhum Leral para comprar carne. Você me liga (já inventamos o celular nessa vila de mentira, ok?): "Ei, será que tem como você matar um boi pra mim e eu te dou dez Lerais quando chegar a época da colheita?"

  • E eu te respondo: "Cara, eu adoraria, mas eu realmente preciso de toda grana que eu puder agora: meu filho não para de crescer e eu preciso comprar calçados novos toda hora. Vamos fazer o seguinte: se você puder me emitir uma promessa de pagar doze Lerais em outubro, quando rolar a colheita, eu posso dar isso ao sapateiro, e a gente faz negócio." Você resmunga por causa da "taxa de juros", mas concorda.

Já sacou onde eu estou querendo chegar? Você e eu acabamos de criar dinheiro. Agora existem na economia do vilarejo 12 Lerais que não foram emitidos pelo banco central. Contando todo o dinheiro que está passando de mão em mão no vilarejo, existem agora (A) todos os Lerais que já foram emitidos, mais (B) os doze que você prometeu produzir.

É importante entender isso: eu acabei de gastar dinheiro em calçados, que você gastou em carne, e que nunca foi impresso. Apesar de obviamente não ser nenhuma das notas emitidas pelo banco central, é definitivamente dinheiro real, com valor real, já que eu o troquei por novos calçados, e você trocou por carne.


  • Quando você e eu e outras pessoas começarem a entender que isso é possível, que podemos gastar dinheiro que não temos e que nem foi impresso ainda, é inteiramente possível surgir uma situação na qual a quantidade total de dinheiro que está passando de mão em mão no vilarejo seja muito maior do que o número de Lerais que foram de fato emitidos e impressos.

  • E isso pode acontecer sem nenhuma fraude, inflação ou nada parecido, e pode ser completamente legítimo.

  • Agora, o que acontece se outra queimada atingir o seu pomar? Aqueles 12 Lerais são destruídos. Eles somem. O sapateiro está 12 Lerais mais pobre, sem gastá-los e sem que ninguém fique 12 Lerais mais rico.

O dinheiro que comprou a sua carne e os meus calçados simplesmente desapareceu da economia, como se nunca tivesse existido, apesar do fato dele ter comprado coisas com genuíno valor e utilidade comercial.

Moedas
Agora você vê... agora não vê mais

Trecho opcional sobre economia baseada em ouro e coisas assim

A história fictícia sobre o vilarejo fictício não representa o modo como o dinheiro de fato passou a existir. Na realidade, as coisas foram bem menos sequenciais e muito mais contemporâneas, sem os momentos "eureka!". A história acima é uma parábola dentro da proposta de tentar explicar a uma criança de cinco anos como o dinheiro funciona e como ele pode desaparecer, não é uma história sobre o como o dinheiro realmente surgiu.

Até tempos relativamente recentes, o dinheiro de papel não era uma coisa muito útil ou prática para a maioria dos propósitos, especialmente se você quisesse gastar dinheiro em um vilarejo diferente daquele onde ele foi emitido.

Se voltarmos no tempo até um período anterior aos caixas eletrônicos, transferências online, alfabetizado popular etc, um pedaço de papel escrito em Timbuktu provavelmente não te valeria muito em Kathmandu. Você poderia levar debaixo do braço as suas maçãs e coxas de veado e calçados para trocar, mas as primeiras unidades monetárias naturalmente surgidas tendem a ser coisas sólidas, raras e facilmente identificáveis (jóias, conchas coloridas etc), e elas frequentemente coincidiam com as decorações pessoais dos ricos, em um loop de feedback auto-alimentável (pessoas com tempo e comida de sobra podiam se decorar com coisas bonitas, que se tornavam valiosas como símbolos de status, o que as tornava ainda mais valiosas como decoração, o que as tornava mais valiosas como objetos de troca, o que as tornava símbolos de riqueza mais prestigiosos etc.).

O ouro emergiu como uma espécie de moeda global inevitável, antes que as pessoas sequer pensassem nele como moeda. Ele é raro, portátil, fácil de identificar, pode ser facilmente transformado em enfeites e é facilmente quantificado (diferente, digamos, de jóias ou conchas, que são mais difíceis de serem tratadas como "substância"). Quando espalhou-se a notícia de que as pessoas ricas gostavam de ouro, tornou-se fácil usá-lo como moeda de troca em qualquer lugar, por qualquer coisa.

Nos estágios iniciais, ele não era exatamente a mesma coisa que "dinheiro", era apenas algo bem aceito em trocas. Mas tinha características típicas de dinheiro:


  • Se alguém entrasse no seu pomar oferecendo uma pedra amarela em troca de maçãs, você poderia olhar estranho para essa pessoa. Que utilidade um plantador de maçãs teria para uma pedra amarela?

  • Mas se você descobrisse que as pessoas ricas do vilarejo desejam este suave metal amarelo para fazer penduricalhos e jóias, talvez você ficasse feliz de trocar algumas maçãs por aquilo.

  • Assim que todo mundo ficar sabendo que os ricos trocam qualquer coisa por essa paradinha, ela se transforma em algo bem parecido com dinheiro de verdade: nem o caçador, nem o sapateiro, nem o pescador têm utilidade para aquilo, mas já que eles sabem que podem usar o ouro para adquirir as coisas que eles realmente precisam e querem, ele se torna uma espécie de certificado transferível de "eu te devo isso" que pode ser resgatado em qualquer lugar. Ou seja: dinheiro.

A história do dinheiro de papel não evoluiu da forma como eu descrevi anteriormente (apesar de que poderia ter sido dessa forma, e teríamos chegado ao mesmo lugar). Na verdade, o dinheiro de papel surgiu como certificados emitidos por cofres de armazenamento de metais preciosos (os primeiros bancos). Em vez de sair por aí carregando pedras de ouro e prata, você poderia deixá-las em um lugar seguro e ganhar um pedaço de papel autorizando o portador a sacar uma certa quantidade do que quer quer seja.

Dólares anteriores a 1934, como virtualmente todas as moedas de papel até tempos relativamente recentes, poderiam ser trocados por ouro ou prata físicos no Federal Reserve Bank, e os dólares só eram impressos se a tesouraria tivesse ouro e prata físicos o suficiente para "pagar" o portador.

Por uma série de outros motivos que são tópicos para outras discussões, decisões foram tomadas que eventualmente levaram ao abandono do "padrão ouro", e agora o dólar, assim como a maioria das moedas modernas, é puramente simbólico: só "vale" o tanto que todas as pessoas concordarem que ele vale, e só pode ser "resgatado" em troca com alguém por algo no valor que a pessoa estiver disposta a te dar por ele. Há longas, barulhentas e contínuas discussões e disputas e debates sobre isso ter sido uma boa ideia ou não, mas não vou chegar a esse tipo de detalhe aqui.

* * *

Nota do editor: Agora que você entende, metaforicamente, como uma crise pode fazer dinheiro simplesmente desaparecer da economia, que tal ver a mesma lógica aplicada a uma situação real?

O vídeo abaixo explica a recente crise americana do crédito imobiliário e deve fazer bem mais sentido agora:

YouTube | Se preferir a versão sem legendas, mas em resolução melhor, clique aqui.


publicado em 26 de Junho de 2012, 10:14
File

Fabio Bracht

Toca guitarra e bateria, respira música, já mochilou pela Europa, conhece todos os memes, idolatra Jack White. Segue sendo um aprendiz de cara legal.\r\n\r\n[Facebook | Twitter]


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