Como sobrevivi à morte do meu pai

A morte de alguém próximo é capaz de provocar as transformações mais profundas e severas

Nota do editor: este artigo é parte da visão que nos motivou a criar o nosso principal evento do ano, o Homens Possíveis. Um evento inteiro dedicado a palestras, vivências, integração e rodas de papo sobre as maiores questões da masculinidade atual. Vai ser 09/12, sábado, em São Paulo. A edição passada foi incrível e esta está ainda melhor, garanta o seu ingresso. Esperamos vocês lá!

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Acomodação, dúvida, doença, morte, solidão, mudança, preocupação e, depois de tudo isso, enfim um pouco de paz. Este é apenas um recorte de uma pequena parte da minha história que me fez amadurecer mais do que já havia feito em toda minha vida.

Tudo começa de um ponto inicial, que no meu caso era minha vidinha muito boa: morando na casa dos pais. Ajudava em uma coisa ou outra, mas tinha morada, comida e roupa lavada sem pedir. Minha irmã morava no apartamento do marido dela, então não havia do que reclamar.

Mas eu reclamava.

Passava a maioria das minhas noites dessa maneira | Foto: flickr.com/thatgrumguy

Sutilmente, tudo virou zica

Quando meu pai começou a chegar em casa com icterícia ficamos muito preocupados, mas como minha mãe e irmã se encarregaram de cuidar do assunto, me aconselharam a dar foco em outra coisa acontecendo no momento: a finalização do meu TCC e minha formatura de Engenharia.

Mesmo preocupado com meu pai e aproveitando a companhia de todos, terminei meu projeto enquanto meu pai transitava entre hospitais e leitos, conhecendo pessoas maravilhosas e com histórias de vida que me lembravam as provações de Jó. Aprendi assim a dar valor ao que tinha.

Finalmente me formei, sem a presença de ninguém da minha família. Apenas alguns amigos e pessoas próximas, mas não foi a mesma coisa. Meus pais e minha irmã estavam em Barretos para um exame mais apurado, pois após três meses ninguém sabia ao certo o que meu pai tinha.

Quando liguei para minha mãe no fim do dia para contar da formatura, não consegui: enquanto eu pegava o diploma, o médico dizia ao meu pai que ele tinha três meses de vida. Por motivos óbvios, não vi graça na minha formatura.

O diagnóstico era câncer de fígado. Era para ser apenas três meses mas meu pai aguentou cinco.

Ele queria viver, compartilhava planos de comprar um carro novo e viajar para Salvador nas férias, construir uma casa na zona rural do sul de Minas Gerais e viver de criação de gado, e sempre que possível viajar sem rumo.

Não deu. Meu velho se foi.

A vida após a morte do meu pai

Minha mãe e eu ainda moramos juntos por quatro meses antes que ela não aguentasse as lembranças e se mudasse para o sul de Minas Gerais – mais perto dos meus avós e de pessoas que teriam tempo para fazê-la pensar em coisas menos doloridas.

De repente, me vi assim: morando sozinho em uma casa com três quartos e dois banheiros, apenas com um computador, uma cama e um microondas. Fiquei duas semanas sem geladeira até comprar uma às pressas.

Agora eu tinha que pagar todas as contas, lavar minha roupa, minha louça, e se não cuidasse da alimentação, passaria fome. A primeira comida congelada foi inesquecível? Não, foi um desastre.

Pelo menos agora tinha água gelada | Nota do editor: é o próprio autor na foto

A solidão tomou conta. Foi um período difícil. Minha namorada não entendia muito bem o que eu estava encarando e, por mais que ela estivesse comigo, no fim do dia, eu me sentia completamente sozinho. Demorou mais um mês para me decidir a fazer o que eu achava que precisava ser feito.

Terminei um relacionamento de quatro anos e meio e tenho a impressão de que foi melhor assim. Havia percebido que para eu me acostumar com a nova vida, precisava mudar tudo, começando pelo lado de fora, mudando meu ambiente para depois ficar de bem comigo mesmo.

Como não queria morar no meu carro, encontrei um apartamento que estava dentro das minhas condições – um achado – e me mudei assim que pude. Não queria ficar em uma casa que poderia render um bom dinheiro de aluguel para minha mãe, a dona de casa.

Trabalhava em uma área que não era a que eu queria, mas eu gostava. Fiz de tudo para procurar outras oportunidades dentro da mesma empresa e consegui uma vaga de engenheiro, que contribuiu para que eu pudesse mobiliar minha casa até chegar ao mínimo de conforto.

Minha irmã ajudou muito com aquelas escolhas que homens-solteiro-de-primeira-viagem não sabiam fazer. Ela me ensinou muito, até o dia em que se mudou para perto da minha mãe. Além dela, alguns familiares e meus amigos me ajudavam. Com certeza contribuíram para minha mudança mais importante, a interior.

Tudo pronto, agora vamos arrumar a parte de dentro

Descobri o PapodeHomem por causa do texto "O que ninguém conta sobre morar sozinho".

Li tudo que podia e não podia, desbravei os profundos oceanos da internet e descobri que poderia aprender de tudo nela, assim como havia aprendido aquela "Equação Ordinária" no Wikipédia e aprendi a programar "PICs" no Youtube. Me desconhecia como leitor assíduo de qualquer coisa como sou hoje.

Aprendi dicas de como cozinhar sem ter um fogão funcional para chamar alguns amigos para almoçar em casa e aprendi que existem um universo paralelo de cultura em um mundo sem limites para se aventurar.

Ceviche: e não é que acertei a mão? | Foto do autor

De repente, filmes e livros se tornaram meus companheiros inseparáveis. Mudei a maneira como me vestia e passei a me interessar por todos os assuntos, desde moda até culinária.

Mas, principalmente, aprendi a acreditar em mim.

Aquele negócio chamado planejamento financeiro, que me atordoava todos os dias, deixou de ser bicho de sete cabeças. Depois de um tempo, sabia de antemão quando pagaria cada uma das contas do mês e impostos, então saberia quanto sobra no fim do mês.

Muitos amigos acabaram se distanciando, mas também vários outros nunca saíram de perto de mim. Alguns que sumiram, voltaram reclamando que eu não dei notícia e sentiam-se agredidos pela distância que acabou se estabelecendo – sem pensar que eles também poderiam ter me procurado.

Foi preciso uma tonelada de paciência para relevar esses casos, e mais uma tonelada de maturidade recém-adquirida para ver que ninguém tem culpa. Panos quentes por cima, e tudo estava conforme sempre esteve.

E como estou hoje?

Sou engenheiro, tenho carro, apartamento e um emprego muito bom para o meu momento. Pago minhas contas, lavo roupa, faço comida e lavo a louça depois. Tenho os melhores amigos do mundo, tenho paqueras, viajo para o sul de Minas Gerais pelo menos duas vezes no mês para ver minha mãe e minha irmã, e gosto muito de tudo isso que vem ocorrendo de bom na vida. Tenho me vestido e me alimentado melhor, conheço pessoas novas a cada dia, aprendo o que preciso aprender e sei que a cada dia posso aprender mais. Devo muito disso ao PapodeHomem.

Tudo isso aconteceu devido a uma atitude que deveria ter tomado logo no início: parar de negar o que estava acontecendo, aceitar e agir para a mudança.

Não sou perfeito e sei que não vai durar pra sempre.

Mas estou feliz.

Quer se aprofundar na visão presente neste artigo?

Este artigo é parte da visão que nos motivou a criar o nosso principal evento do ano, o Homens Possíveis

Teremos a presença de homens com grandes trajetórias compartilhando suas visões sobre masculinidade e como podemos nos aprimorar em nossas jornadas.

Homens Possíveis é um evento inteiro dedicado a palestras, vivências, integração e rodas de papo sobre as maiores questões da masculinidade atual. Vai ser 09/12, sábado, em São Paulo. A edição passada foi incrível e esta está ainda melhor, garanta o seu ingresso. Esperamos vocês lá!


publicado em 30 de Abril de 2013, 21:29
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Thiago Pereira

Engenheiro com a cabeça nos ares, faz academia e sempre acha que cabe mais um livro na estante. Mora sozinho e acha divertido. Nas horas vagas exerce sua paixão por fotografia, postando a maioria dos seus trabalhos no Facebook.


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