Como viver com um sentido realista de bem-estar em um mundo onde há tantas causas para desespero, medo e raiva?

Alan Wallace se dedica a ensinar práticas efetivas para cultivo de bem-estar, estabilidade e clareza mental há mais de 4 décadas. Nesse texto ele compartilha parte de sua fascinante visão e caminhos concretos para mudança

Recentemente, vi um adesivo que dizia: “Se você não está se sentindo indignado, não está prestando atenção.” Não é preciso muita imaginação para entender o que o motorista estava pensando.

Entretanto, se vagamos pela vida em um estado contínuo de indignação, então provavelmente somos mais uma parte do problema do que parte da solução. Lembre-se das palavras de William James: “A cada momento, aquilo a que prestamos atenção é a realidade." Isso vale para a visão de mundo que absorvemos através da mídia, para a nossa experiência do mundo imediato ao nosso redor e também para a nossa compreensão de nós mesmos.

Assim, como poderíamos viver com um sentido realista de bem-estar em um mundo onde há tantas causas para desespero, medo e raiva?

Uma possibilidade seria por meio do cultivo da alegria empática, mudita em sânscrito. Nessa prática, buscamos pessoas e eventos específicos com os quais nos alegramos. Nenhum de nós é capaz de apreender a realidade como um todo: estamos a todo momento selecionando a experiência de realidade que temos, por meio dos tipos de coisas que olhamos e pela forma como olhamos. Estamos sempre inserindo e deletando percepções, escolhendo o que será real para nós ou deixando que essas escolhas sejam feitas pela mídia e por outras instituições poderosas.

A alegria empática, em particular, é pertinente à nossa sociedade e ao mundo moderno em que vivemos. Isso se deve ao acesso sem precedentes que temos, por meio da mídia, ao estado em que o mundo se encontra, especialmente aos aspectos que podem dar origem a tristeza, ansiedade, depressão, cinismo, fúria e desespero.

Tome o exemplo dos vieses das notícias veiculadas pela mídia. As notícias tendem a se concentrar nas grandes tragédias, nas crises, nas misérias e nos males do mundo. Isso é o que vende. Em um mundo onde há tanto conflito e sofrimento, os atos excepcionais de sabedoria e compaixão são a verdadeira notícia, mas recebem pouca cobertura. Assim, como resultado da miopia da mídia, perdemos de vista as muitas virtudes e alegrias do mundo. Elas parecem menos reais para nós. Nessa prática, buscamos equilibrar esse ponto.

Ao cultivar a alegria empática, optamos deliberadamente por tentar descobrir, com atenção vívida: “Onde há felicidade e virtude no mundo?”

É claro que é relativamente fácil experimentar alegria empática em relação a alguém próximo a você. Se o seu filho consegue algo que desejava ou um amigo é promovido para um emprego fabuloso, a alegria empática surge naturalmente. Mas, nessa prática, tentamos ampliar o alcance do nosso deleite com a felicidade de outras pessoas, com as alegrias e sucessos de estranhos.

Enquanto a empatia é limitada e nos alegramos com algumas pessoas e não com outras, enquanto sentimos compaixão e bondade apenas por um grupo seleto de seres, essas qualidades do coração estão contaminadas pelas aflições de apego e aversão. Então, o que estamos buscando nessa prática é a ausência de limites.

Quando a bondade amorosa se torna incomensurável, sem excluir ninguém, isso é o que chamamos de “amor incondicional”. E quando a compaixão torna-se incomensurável, incluindo todo o mundo – os malfeitores e as víti-mas –, isso se chama “compaixão incondicional”. Da mesma forma, quando a alegria empática se estende, como a água se espalhando uniformemente sobre uma planície, sem vieses, sem preconceitos, essa é a alegria empática incondicional e ilimitada.

Olhe ao seu redor. Não é difícil encontrar felicidade.Você pode se deliciar com algo tão simples quanto uma criança bem faceira, andando pela rua, desfrutando de uma casquinha de sorvete, ou devorando um biscoito. Alegre-se com a felicidade dessa criança e, então, regozije-se com a felicidade que se espalhou até você – não há nada de errado nisso. E não se exclua de qualquer uma das quatro qualidades incomensuráveis, porque assim deixaria de ser incomensurável. Aprofundando-nos um pouco mais, percebemos que, se o regozijo com os frutos da felicidade é significativo e benéfico, então é claro que vale a pena deliciar-se com as sementes da felicidade.

Assim como a bondade e a compaixão se aprofundam quando se integram à sabedoria, o mesmo ocorre com a alegria empática.

Todos nós podemos nos lembrar de momentos em que experimentamos uma sensação de bem-estar que não foi causada por nenhum estímulo externo aparente. Nesses momentos, o coração está pleno e enternecido. Sorrimos facilmente. Há um sentimento de alegria. Podemos nos perguntar: “O que causou isso?” Com sabedoria, podemos reconhecer que, se a causa não está fora de nós, ela só pode estar em um lugar: na nossa própria mente.

A psicologia budista preocupa-se principalmente com a compreensão dos estados mentais que, por sua própria natureza, dão origem à felicidade, bem como daqueles que resultam em sofrimento e conflito. Os primeiros são con-siderados saudáveis e os últimos, aflitivos. Essa é uma questão de causalidade no contexto da experiência humana, não de moralidade imposta sobre a humanidade por uma autoridade moral externa.

Quando a mente está saudável, ela nos conduz a uma sensação de felicidade que surge da sua própria natureza. Assim, quando estamos na presença de pessoas que demonstram estados mentais, fala e conduta física saudáveis, podemos sentir prazer. E, se assim desejamos, podemos expressar a nossa alegria.

Não é preciso um evento dramático para fazer brotar a alegria empática. Pode ser algo tão banal como uma simples cortesia. Isso aconteceu comigo uma vez em uma viagem ao México. Eu havia confundido a disposição dos assentos e tomei o lugar de outra pessoa. Claro que a pessoa que tinha reservado o assento acabou chegando. Quando a aeromoça explicou a confusão, a pessoa cujo assento eu havia tomado muito sinceramente pediu desculpas por qualquer problema que poderia estar causando a mim. E, naturalmente, eu estava arrependido de ter sido a causa da confusão. Não foi grande coisa, mas a simpatia e a gentileza que experimentei foram genuínas, e algo para alegrar.

Esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Então, quando topar com elas, faça a si mesmo um grande favor: não deixe de vê-las, preste atenção. Se você não está se alegrando com a bondade do mundo, você não está prestando atenção.

É também vital nos deliciarmos com as nossas próprias virtudes. Se seus atos de bondade e sabedoria são deliberados ou espontâneos, alegre-se com a bondade que está trazendo ao mundo. Muitas pessoas tendem a subestimar sua própria bondade, pensando que devem ser humildes em vez de serem, ou parecerem, satisfeitas consigo mesmas. Dessa forma, ignoram suas próprias qualidades e ações positivas. Mas o budismo diz que isso não é apropriado. Afinal de contas, se vale a pena regozijar-se com qualidades e ações virtuosas de outras pessoas, isso é igualmente valioso com relação a nós mesmos. No budismo se diz que a maneira mais fácil e rápida de fortalecer nossa prática espiritual é nos alegrarmos com as nossas próprias virtudes.

Ao ter prazer com as ações virtuosas, intensificamos a potência dessas ações e, assim, elas geram mais frutos.

O mesmo se aplica às ações negativas. Quando você conscientemente tem prazer em fazer algo prejudicial aos outros, o ato negativo ganha mais poder. Por exemplo, se gostamos de fazer comentários sarcásticos para diminuir os outros, reforçamos a tendência para o sarcasmo. Da mesma forma, sentir remorso em relação a algo, seja virtuoso ou não virtuoso, atenua o poder da ação. Assim, ter prazer com a felicidade e as causas da felicidade, em relação a nós mesmos e aos outros, é um elemento crucial da prática espiritual. A nossa prática irá florescer a longo prazo apenas quando estiver plena de entusiasmo, e o caminho para a prática alegre é ter prazer a cada momento.

Podemos nos alegrar com aqueles que se dedicam à prática espiritual, incluindo os que se recolhem temporariamente, seja para um retiro de fim de semana, uma hora de meditação por dia, um retiro de seis meses ou um retiro de 25 anos.

Por que nos alegrarmos com isso? Se as pessoas evitam as interações sociais apenas por aversão ou por exaustão, não há nenhum valor especial nisso. Mas e se uma pessoa ocasionalmente se retirar por qualquer período que pareça significativo e adequado a fim de cultivar virtudes como o equilíbrio da atenção, a atenção plena discriminativa, o amor e a compaixão?

A curto prazo, pode parecer que essa pessoa não está fazendo nada pela sociedade. Mas essa prática leva ao equilíbrio psicológico e ao amadurecimento espiritual. É claro que vale a pena. Quando essas pessoas acessam os seus recursos internos de virtude mais profundos e depois retornam à ativa com maior bondade, clareza e discernimento, elas nos demonstram, por exemplo, que agora mesmo temos dentro de nós tudo de que precisamos para encontrar a felicidade que estamos buscando.

Conheço vários iogues tibetanos que passaram décadas em retiro de medi-tação solitária. No entanto, muitas pessoas na sociedade de hoje desconfiariam desse estilo de vida recluso. Quando entrei no meu primeiro retiro longo de shamatha, em 1980, o Dalai Lama me falou sobre um monge que vivia em retiro no Butão e que havia realizado shamatha plenamente. A seguir, o monge passou à prática de vipashyana e um dos resultados de sua prática foi que, depois de algum tempo, descobriu que podia curar as pessoas de várias doenças por sua simples presença. Logo ele teve que interromper sua prática meditativa, porque as pessoas estavam fazendo fila do lado de fora de sua cabana para serem curadas. 

Presumo que sua motivação original para a prática era a de curar sua mente de todas as aflições, mas – vejam vocês – ele descobriu que sua presença poderia curar os outros de suas aflições físicas espontaneamente. Admiramos as pessoas que, a fim de curar os doentes, estudam medicina durante anos a fio e podemos também nos alegrar quando, a fim de curar a mente de todas as suas aflições, outros se dedicam a uma rigorosa prática contemplativa.

Ao praticar as quatro qualidades incomensuráveis, o foco não é nem o eu, nem os outros. Pelo contrário, o tema recorrente é “tanto para nós mesmos quanto para os outros”. Há aqui uma completa igualdade, uma total uniformidade. O cultivo da alegria empática é uma prática significativa, virtuosa e que traz satisfação sem absolutamente nenhuma desvantagem. Quer consideremos nós mesmos ou os outros, o que nos traz prazer é a própria ação virtuosa.

Portanto, a solução para o problema do egoísmo é muito simples: nenhuma das virtudes que ocasionalmente manifestamos e nem as atividades virtuosas das quais participamos surgem de um ego autônomo e autossuficiente. Em primeiro lugar, esse ego não existe. Todas essas virtudes surgem em dependência de causas e condições como eventos interdependentes.

Considere as suas próprias qualidades mais primorosas e se pergunte de onde vieram. Elas surgiram em relação às pessoas que cuidaram de você conforme você cultivava essas qualidades. O que estava apoiando você em tudo isso? O que estava impedindo essas qualidades de se perderem ou de serem suprimidas?

Quando começamos a observar o que dá origem às nossas virtudes de corpo, fala e mente, descobrimos que todas surgem devido a causas e condições. Em resumo, todas as virtudes e alegrias dependem da bondade de outros.

Quando começamos a ponderar sobre isso, notamos duas coisas que andam sempre juntas. Em primeiro lugar, podemos nos alegrar com os aspectos de nosso próprio comportamento que trazem felicidade para nós mesmos: “Como é maravilhoso que o meu modo de vida traga felicidade para mim e para os que me rodeiam.” Então, olhamos mais uma vez, questionando de onde tudo isso veio, começando por nossos pais, professores, amigos e por outras pessoas que nos ajudaram. Todos eles nos ajudaram a cultivar o que há de bom em nossas vidas neste momento.

Assim, ao mesmo tempo nos alegramos com a virtuosidade de nossas vidas e, com gratidão, nos regozijamos com aqueles que nos apoiaram. Esse é o antídoto para qualquer arrogância que possa surgir de nos alegrarmos com as nossas próprias virtudes.

Escolha você mesmo o tipo de realidade em que deseja habitar. Se não fizer isso, o bombardeio de estímulos da mídia irá forçá-lo a internalizar uma perspectiva que alguém escolheu por você. E essa visão da realidade não é necessariamente a mais interessante. Quando encontrar as causas da felicidade em outros – um pouco de bondade aqui, um pouco de cordialidade ali –, pare por uns instantes e se alegre com isso.

O fac-símile empobrecido ou a falsa impostora da alegria empática é uma espécie de felicidade superficial, frívola, que se fixa em prazeres mundanos. Em vez de serem percebidos com empatia, os outros são vistos como objetos que nos fazem felizes, que nos “dão barato”. O oposto da alegria empática é a inveja. Enquanto a alegria empática é ter prazer no sucesso, virtudes e talentos de outra pessoa, o oposto é o descontentamento, o cinismo e a inveja. Nesse caso, percebemos a virtude de outras pessoas e não a vemos como tal. Em vez disso, nos perguntamos: “Qual é a dessas pessoas?” Estamos de volta à ideia de uma relação “eu-isso” com os outros. Essa é uma atitude que começa e acaba em derrota.

Como disse o Dalai Lama, se você perder a esperança – se você cair no desespero, que é outra palavra para a descrença –, não há nenhuma chance de sucesso, porque você irá falhar devido à sua própria atitude.

A causa imediata da alegria empática é simplesmente a consciência da virtude e da alegria de outras pessoas. Portanto, essa prática é principalmente aprender a prestar atenção. Se realmente estamos atentos ao sofrimento de outras pessoas, a compaixão surge naturalmente. E, se prestamos atenção à felicidade e ao sucesso, alegria empática é uma resposta natural.

O cultivo da alegria empática é bem-sucedido quando o seu oposto diminui. Tornamo-nos menos descrentes, sentimos menos inveja. Ao invés de ficarmos descontentes, tornamo-nos, como brincou P. G. Wodehouse, “contentes”.

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Para se aprofundar mais: 

Para começar a meditar, por Gustavo Gitti 

Mudar é fácil... | Como a gente se transforma? #1, por Gustavo Gitti

Podemos usar nossas próprias aflições mentais para cultivar uma mente mais saudável?, por Mingyur Rinpoche
 


Nota do editor:  este texto é um trecho do livro Felicidade Genuína, de Alan Wallace, um dos maiores cientistas e autores sobre o budismo tibetano no ocidente, se dedicando, principalmente, a integrar as práticas contemplativas budistas com a ciência ocidental. Ele foi traduzido e publicado pela editora Lúcida Letra, do Vitor Barreto, amigo e autor no PapodeHomem.

É parte de uma parceria nasce do respeito que temos pelo trabalho da editora, que promove um conteúdo de florescimento humano apoiado por nós. 

Você pode também comprar o livro Felicidade Genuína, do Alan Wallace, clicando na imagem abaixo.

 

publicado em 11 de Junho de 2017, 01:28
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Alan Wallace

Alan Wallace é um dos mais prolíficos autores e tradutores do budismo tibetano no Ocidente. Foi monge budista durante quatorze anos nas décadas de 70 e 80. Mais tarde, recebeu o título de Ph.D. pela Universidade de Stanford e atualmente dirige o Instituto Santa Barbara para Estudos da Consciência.


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