Devolve aí o cidadão de bem! | Cotidiano #7

Moro em uma avenida movimentada, cheia de comércio e gente. Lá tem um cara que todo mundo aqui conhece, figura interessante.

Ele vende livros, daqueles usados que ninguém mais quer, uns Dan Brown da vida que, se olhar debaixo da cama, vai encontrar um; o CD do acústico dos Titãs que, se jogar pela janela, misteriosamente aparece na gaveta do seu banheiro. É desses que ele vende. Chega de manhã e enfileira os exemplares entre uma loja de sapatos e a padaria da esquina. A Lili, sua cadelinha, o segue por onde quer que vá, está sempre de banho tomado e tem comida e água de sobra. Se fizer chuva, ele estará lá, assim como se fizer sol. Trabalhador.

No final da tarde, recolhe seus livros, vai para o bar e torra tudo em cachaça. Toda noite ele zanza bêbado com a Lili o seguindo enquanto  ele pragueja o Obama, os pilantra e as vadia.

Perdido, fodido, como você e eu. Não faz mal a ninguém além da chatice de o ouvir berrando de quando em quando. Um cidadão de bem.

O que eu quero dizer com isso?

Cidadão de bem é o cara aqui de cima, que nunca quis separar o país, não faz testes com animais e não fica ansioso e cobrando quando não aparece dois tiques azuis no Whatsapp. É a garota que acorda cedo para pegar duas horas de trem para chegar no trabalho e vai falando putaria com alguns chegados por mensagem, dando asas à imaginação uns dos outros.

Esses sim, fazem o bem.

Só que, em um genial golpe de inversão de valores, o tal cidadão de bem foi, aos poucos, sendo apropriado por uma galerinha que não é tão de boa assim, separatistas e segregadores e mesquinhos e chatos de galochas. Ora, já nos tomaram o salgado mais gostoso das festinhas de criança. Hoje, se tenho vontade de comer coxinha, tenho de ir ao Itaim ou Higienópolis, porque o termo — surrupiado dos botecos do Jabaquara, da Vila Maria e do Jaguaré — está em poder deles. Uma apropriação silenciosa que nos custou a fritura empanada de frango. Tem que ri, tem quem ache graça.

E deixamos. Entramos facilmente na ironia rasteira e permitimos que, de tico em tico e de teco em teco, o termo fosse surrupiado, feito assalto em banco central, sabe? A gente comendo cachorro-quente — e ai de quem tentar me roubar esse termo também! — e o pessoalzinho do mal levando tudo pelo túnel.

Quando vi, já não restava mais nada. Até as variantes eles agafanharam, “homem de bem”, “mulher de bem”, “família brasileira”. O “tradicional”, pode levar, já tá velho mesmo. Mas, por deus, o resto fica!

Os KKK já tentaram fazer isso antes e se deram mal. Fizeram um jornaleco chamado “O bom cidadão” (The Good Citizen) e hoje só aparecem em filmes de história, muitas vezes até como paródias que dão o alívio cômico à trama. Pois bem, isso foi nos anos 10 do século XX e o espiral da história nos deixou à frente, mas no mesmo ponto. Ansiedade de novos tempos e medos de mudanças que constroem pessoas que querem defender o tal cidadão de bem. Daí, já adiantando a piada, deixamos o nome com eles e tocamos a nossa vida de boa.

Mas chega. É o momento de desapropriá-los, fazer reintegração de posse e colocar o termo onde ele merece: com os assanhados, os boêmios, os de pouca grana e muitos quilômetros rodados. Que chamemos os apaixonados de cidadãos de bem, os que fazem bolos de cenoura e chocolate, os que deixam ir, os que não deixam estar.

Essa galerinha aí não é flor que se cheire (a tira é, claro, do Laerte)
Essa galerinha aí não é flor que se cheire (a tira é, claro, do Laerte)

No caminho da casa para o trabalho, eu passo em uma rua bem de bairro mesmo, casinhas com quintal, pouco movimento, quase uma viela. Todos os dias, quase no meio do quarteirão, eu trombo com uma senhora que tá lá, varrendo a calçada, cortando alguma muda da roseira que ela tem. Ela é um doce, tá sempre com um baseado na boca e segurando o ar. Me dá aquele “tchau” com a mão, sem soltar uma tossezinha sequer. Quando está entre uma atividade ou outra, ela me oferece um tapinha, aquela coisa de vizinho, de acolhimento. Sempre neguei, acho que ela vai aproveitar bem mais que eu. Mesmo assim, ela está sempre lá, educada e disposta a compartilhar.

Pessoa de bem.


publicado em 06 de Novembro de 2014, 22:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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