Duas manchas roxas, conto

Vossa Excelência, nobres membros do júri, eu gostaria de iniciar a minha explanação final citando um conhecido ditado, do qual eu discordo: um advogado que defende a si mesmo, tem um cliente tolo. Este conceito, quase sempre verdadeiro, não se aplica a casos como o meu, em que a inocência do réu é tão clara. Consistiria até em ato anti-ético da minha parte ocupar o tempo de algum advogado cujos talentos poderiam ser melhor utilizados em processos mais controversos.

Vamos aos fatos, então: é verdade que na tarde de 5 de novembro eu tentei envenenar minha esposa, colocando veneno de rato em sua comida. Não nego que na noite de 23 eu tenha escondido dentro de seu sapato preferido um escorpião venenoso, na esperança de que ela morresse. E confirmo que na manhã de 30 de novembro, movido pelo desespero, apelei para métodos deselegantes e atirei em minha mulher, colocando-a no estado de coma em que se encontra.

Se julgarmos um homem apenas por suas ações, eu estaria perdido. Mas sabemos que não é assim que funcionam os julgamentos em sociedades civilizadas como a nossa. Devem também ser levados em conta os motivos que levaram essa pessoa a tomar a medida de extrema censura sobre outra.

"Golconde" (1953), por René Magritte (1898-1967)
"Golconde" (1953), por René Magritte (1898-1967)

É nisto que reside a minha confiança na absolvição, nobres senhores. Na certeza de que o que fiz foi um ato de legítima defesa, que qualquer um nesta sala teria perpetrado se se visse na situação desesperadora em que me encontrei. Defesa não da minha vida, entendam, mas de minha obra.

Será necessário voltarmos no tempo, agora, até antes de meu casamento com essa filistéia, e repetir, de maneira compacta e cronológica, fatos esparsos que foram citados ao longo deste julgamento, para que os senhores possam ter uma visão geral de minha tragédia.

Conheci essa senhora logo após o lançamento de meu primeiro livro, trinta anos atrás, quando o sucesso de que desfruto hoje era apenas um arrogante sonho. Notem, por favor, que foi ela que me procurou, fascinada com meu estilo incisivo e na esperança — que se concretizou — de que o autor fosse tão penetrante quanto.

Apareceu em minha editora e, valendo-se de subterfúgios sórdidos — que na época achei atraentes — conseguiu arrancar de algum funcionário o meu telefone, informação proibida de ser divulgada. Depois me procurou, cheia de elogios para o livro e seu autor, o que quebrou qualquer resistência que eu pudesse ter tido. Começamos a nos ver com frequência.

Nosso primeiro problema, nobres senhores, foi semântico. Ela exigia ser tratada por títulos — namorada, noiva, esposa — aos quais, a meu ver, ela não tinha direito. Para mim, ela era apenas uma amante, e assim eu a apresentava em rodas sociais. Minha amante.

Como alguém que me conheceu por intermédio da literatura, ela, mais que todos, deveria ter compreendido que o meu único compromisso de vida, no amor e na doença, até que a morte nos separasse, era com as letras. Minha esposa, e coloquemos isto entre muitas aspas, nada mais representava para mim do que uma amante, com a função de ocupar as noites vazias em que a esposa de fato — caprichosa e dominadora — não exigisse minha presença, e satisfazer certas necessidades físicas básicas que, infelizmente, a titular jamais conseguiria suprir com sucesso.

Depois de algum tempo, ela parou de implorar para que eu modificasse o tratamento e concluí que se conformara com a posição subalterna. Mas, inacreditável como possa parecer, e apesar da clareza com a qual eu lhe expusera minha filosofia de vida, acontecimentos posteriores provaram que ela nada entendeu, pois continuou exigindo de mim irrestrita atenção e amor, caprichos que eu não podia lhe conceder.

Com o passar dos anos, ela se envolveu cada vez mais comigo, enquanto eu, começando a fazer sucesso, me perdia na voluptuosidade das letras. Enfim, manipulado pelo súcubo, fui coagido a renunciar aos meus votos e me casar.

"Os amantes" (1928), por René Magritte (1898-1967)
"Os amantes" (1928), por René Magritte (1898-1967)

Nossa vida conjugal era rodrigueana: nada ela entendia, tudo criticava.

Meu trabalho, por exemplo, me absorvia por horas, mas eu pouco produzia, segundo ela. Escapava à sua mentalidade estreita a noção da seletividade, que eu escrevia muito para poder publicar pouco e melhor. O que ela queria ver impressos eram livros que eu escrevera e que não estavam à altura de minha reputação, obras menores! Nem com a alcunha que eu recebi, de escritor cuja fama aumenta a cada livro que não escreve, deixou ela de me pressionar a ganhar dinheiro.

Reparem, nobres senhores: estamos lidando com uma criatura que ousa mencionar dinheiro quando o assunto é Arte!

E nos poucos instantes em que eu saía de minha máquina de escrever e ia para a janela observar o movimento da rua, ela ainda assim me atormentava, achando que eu estava em alguma espécie de recreio.

Não podia ela entender, com sua sensibilidade tão limitada, que quando um escritor olha por sua janela em silêncio, aquilo é tudo menos recreio, e sim outra etapa crucial de seu duro ofício.

Há mais, nobres senhores, embora apenas isto, como puderam constatar, seja razão suficiente para homicídio.

Perpetrou sórdidos crimes: me interrompia enquanto eu trabalhava, fazendo com que perdesse palavras e impressões que jamais encontraria. E tentava justificar o injustificável, expondo o tal motivo importante pelo qual pecara, como se algo fosse mais sublime do que a palavra certa na frase certa!

Tenho a meu favor jamais ter acedido a seu insistente pedido de procriar. Para que ter filhos quando cada livro que escrevo, além de longa e tumultuada gestação, na qual posso vê-lo nascer, crescer, se desenvolver e amadurecer, também me dá inúmeras alegrias e frustrações, dores e prazeres? O que mais um filho poderia me oferecer, um pedaço de carne ambulante condenado a uma morte inevitável e ao subsequente apodrecimento? Meus livros, ao contrário, permanecerão vivos pelos séculos. E ela pedia atenção, senhores! Numa descarada hipocrisia, ela, que sabia das regras de nosso casamento, ousava reclamar atenção para si, dizendo que eu não lhe prestava a cortesia e o respeito devidos!

"O filho do homem" (1964), por René Magritte (1898-1967)
"O filho do homem" (1964), por René Magritte (1898-1967)

Alguns meses atrás, depois de implacável insistência, a criatura me convenceu a passar o feriado de finados na casa de sua prima, em Capivara. Sabia ela estar eu mergulhado em um novo romance, Duas Manchas Roxas, destinado a ser a minha obra-prima, mas não teve escrúpulos em usar de chantagem para fazer com que eu abandonasse as manchas — perdendo o ritmo — e viajasse com ela.

Não satisfeita com o resultado de suas maquinações, ela sorrateiramente retirou as manchas roxas de seu esconderijo à prova de fogo e as despachou para a casa de sua prima, no mesmo trem que pegamos! Ou foi o que disse. Nunca se pode saber ao certo, visto que estamos lidando com um cérebro ensandecido. Quem sabe ela não o destruiu, com deliberada crueldade?

O fato é que o romance — seu único original, sem cópias — não chegou nunca ao destino e jamais se ouviu falar de nenhuma das duas manchas roxas. A minha obra-prima, senhores!

Uma cuidadosa análise desta mente criminosa não me revela outra explicação para seus atos que não causar minha ruína. Por que outro motivo teria esta medéia cometido semelhante atrocidade?

Diz ela — os facínoras sempre têm uma desculpa na ponta da língua — que o que fez foi por amor a mim! Amor, senhores! Ela ousa falar de amor! Que queria me fazer uma surpresa, que queria que eu pudesse continuar o meu trabalho na casa de sua irmã, que não queria me interromper o ritmo e que tinha separado um cômodo especial para ser meu escritório! Mentiras, mentiras!

Mas suponhamos que diz a verdade. Pois nós, cidadãos civilizados, sabemos que todos são inocentes até que se prove o contrário, e que mesmo maníacos deste calibre merecem o benefício da dúvida.

Que seja verdade, então. Que suas intenções tenham sido puras. Por que uma mulher que ama o marido iria submeter sua obra-prima às intempéries ferroviárias? Com que direito ela assume tamanho risco para o original de um romance que nem cópia tinha? Não, meus senhores, não! A hipótese de conspiração se faz mais crível!

"Clarividência (Auto Retrato)" (1936), por René Magritte (1898-1967)
"Clarividência (Auto Retrato)" (1936), por René Magritte (1898-1967)

Abalado com tão horrenda catástrofe, não consegui jamais retomar as manchas. Quem perdeu não fui eu, senhores, foi a humanidade!

A idéia de homicídio cruzou a minha cabeça, enfim. Essa meretriz merecia a morte. No início de novembro, coloquei o veneno em sua comida, mas ela apenas adoeceu. Sofreu tanto que eu me senti vingado e desisti de idéias assassinas.

Alguns dias depois, entretanto, ela cruzou o limite do ponderável e decidi que, em nome da humanidade, ela teria que morrer. Lendo o meu novo romance, Deus e suas Filhas, que eu começara após a perda do último, e de qualidade pouco inferior, a demente riu. Achou deus e suas filhas ridículos e merecedores de adjetivos que eu não ouso repetir em um ambiente nobre como esse.

Durante a noite, convencida da falta de valor deste novo romance, jogou ela deus no incinerador, junto com as cópias que eu previdentemente havia tirado.

É desnecessário afirmar a gravidade deste crime. Minha esposa provou, sem qualquer dúvida, estar envolvida em uma conspiração para acabar comigo e com minha obra.

Eu tinha que me defender, ou a humanidade não me perdoaria. No quadro geral da vida, quem é a minha esposa? Um nada, um ponto, um ser insignificante. Minha obra, ao contrário, é um legado da coletividade e deve ser preservada a todo custo!

Coloquei o escorpião em seu sapato preferido, na esperança que lhe mordesse o pé e a matasse, mas a empregada o encontrou primeiro. Desesperado, atirei nela, e tudo o que consegui foi deixá-la em coma.

Como posso me arrepender, se sei terem sido minhas ações justificadas? O que fiz, faria de novo, em legítima defesa e sabedor de estar servindo aos interesses superiores da raça humana.

Estou aqui hoje perante os senhores com a tranquilidade de quem não tem o que temer. A posteridade me julgará, compreenderá e perdoará, e sei que minha obra vai sobreviver às brigas e julgamentos de nosso tempo.

Enquanto o nome de minha esposa será somente uma lápide suja em um cemitério vazio, eu permanecerei.

"O telescópio" (1963), por René Magritte (1898-1967)
"O telescópio" (1963), por René Magritte (1898-1967)

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Infelizmente para o escritor, seus apelos caíram em ouvidos moucos, pois o júri era composto apenas de contadores, auditores, engenheiros, estatísticos e fiscais do imposto de renda. Ele foi condenado à morte.

Alguns dias depois da execução, sua esposa saiu do coma e sabendo do acontecido, mandou publicar todos os romances que seu marido não quisera ver divulgados em vida e para os quais ele deixara instruções explícitas em seu testamento para que fossem destruídos quando de sua morte.

Como ele era um nome famoso, suas obras completas tornaram-se best-sellers instantâneos e ele virou uma mania nacional, fazendo da viúva uma mulher rica.

Mas toda moda acaba rápido, e os seus novos livros, afinal, eram apenas obras menores. O interesse do público se desvaneceu, e em menos de dez anos, ele foi esquecido. Ninguém se lembrava de seu nome, e seus livros nunca mais foram reeditados.

A viúva, entretanto, casou com um contador, que como se sabe, não têm o menor senso artístico, e viveu feliz para sempre.

"A giganta" (1936), por René Magritte (1898-1967)
"A giganta" (1936), por René Magritte (1898-1967)

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Todas as ilustrações desse conto são do artista belga René Magritte (1898-1967).

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"Saudade" (1940), por René Magritte (1898-1967)
"Saudade" (1940), por René Magritte (1898-1967)

publicado em 28 de Dezembro de 2012, 22:03
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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