Inteligência coletiva como processo emergente | WTF #24

“Sinergia” é definida como a interação de múltiplos elementos num sistema de forma a produzir um efeito diferente ou maior do que a soma de seus efeitos individuais. Vem do grego “synergos”, que quer dizer “trabalhando em conjunto”.

sinegia

O exemplo mais simples de colaboração entre duas pessoas diferentes seria uma pessoa baixa e outra mais alta, mas ambas incapazes de alcançar as frutas em uma árvore – quando uma sobe na outra, elas podem dividir os frutos.

Quando a complexidade de um grupo de entidades aumenta, as relações sinergéticas podem vir a produzir o que se define como “emergência”. Esta é uma propriedade do grupo que não pertence e não pode ser encontrada em nenhuma das partes.

Assim, a capacidade de produzir guitarras com determinado controle de qualidade e preço não está em nenhuma das máquinas ou mão de obra de uma fábrica, nem no capital ou na administração, mas numa característica própria e específica da interdependência e da interação dinâmica de todos os fatores.

Pode haver elementos indispensáveis, e, sem dúvida, mais importantes, mas o resultado ótimo só pode ser atingido com um processo de adaptação de múltiplas combinações sinergéticas, emergindo um produto ideal que é uma mistura de todos esses fatores, e mais do que eles, como, por exemplo, um momento no tempo, a disponibilidade de certos materiais peculiares a esse momento e determinadas expectativas do consumidor.

Os exemplos biológicos abundam: as “catedrais” de cupins, construções que esses insetos fazem em diversos lugares no mundo, possuem características próprias, e que se adaptam ao ambiente – com processos de regulação de temperatura, por exemplo. Ainda assim, não há nem mesmo um cupim arquiteto propriamente gerenciando o processo.

Podemos hesitar em chamar aquilo que num determinado ponto descamba nesse resultado tão inusitado de “inteligência”, muito menos “inteligência coletiva” (dos cupins), mas o fato é que um processo adaptativo muito longo produziu, através de várias sinergias bioquímicas e com o ambiente – e a memória genética da espécie – desenhos e “métodos” que não estão contidos em nenhuma das partes, mas que “emergem” do funcionamento do conjunto.

Existem em filosofia da mente proponentes do que se chamaria de emergentismo nessa área: a saber, que a consciência ou a mente surge, por sinergias adaptativas, dos processos físico-químicos do cérebro. Porém mesmo essa explicação emergentista, que parece tão razoável ao cético um pouco mais ferrenho, em certos âmbitos soa mágica.

Afinal, embora saibamos que um conjunto de elementos em interação possa produzir uma propriedade nova, o mecanismo exato nesse caso, aparentemente, não está nem perto de ser descoberto. Isso não é estranho, porque os mecanismos exatos das catedrais de cupins ou empresas bem sucedidas também não são totalmente claros.

TermiteMound

Em todo caso, o aparente salto lógico perante a ideia de que propriedades novas podem surgir da combinação de propriedades antigas, depende do quão “novas” sejam essas propriedades, isto é, do quanto difiram das propriedades originais. Se algo como minha existência mais íntima e o que tomo como mais caro, minha experiência subjetiva, emerge de coisas tão triviais como processos físicos e químicos, temos aí um salto bastante grande.

E nos dois sentidos: podemos superestimar o processo emergente ou os processos subjacentes (a consciência ou a fisiologia, as manifestações políticas ou a rede social), mas o fato é que o dualismo cartesiano, de quem supostamente estaríamos tentando escapar com o fisicalismo e o funcionalismo que permeiam as neurociências, novamente se instala ao não fornecermos explicação detalhada dessa conexão, e ao sabermos que, embora uma coisa se comunique – de algumas formas misteriosas – com a outra, uma não conhece a outra. Tornam-se, propriamente, duas substâncias.

Uma das tentativas de explicar, de forma geral, como esses processos ocorrem é a auto-organização, porém, enquanto que fenômenos um pouco mais simples como a cristalização possuem modelos explicado de forma bastante pormenorizada, fenômenos mais complexos – biológicos, mesmo em animais bem simples – ainda não possuem modelos mais que muito gerais.

O próprio conceito de auto-organização ou de ordem-naturalmente-vinda-do-caos surge no mais das vezes mais como um rótulo do que como uma explicação, e curiosamente algumas vezes é difícil não confundir os dois, isto é, essa é uma ordem imposta ou percebida pelo sujeito que analisa os fatos, ou é algo que surge como uma propriedade independente? Há uma real diferença entre essas duas coisas? É importante verificar que tipo de implicações e filosofias subjacentes compramos junto com uma explicação que no fundo não explica muita coisa.

Esses problemas são interessantes e vastos o suficiente. Mas para quê simplificar?

Que tal se seguirmos então para um “terceiro nível”?

Este seria uma espécie de consciência hegeliana, emergente da rede cultural e do zeitgeist. Esse que podemos chamar de espírito do tempo, o monstro da história, com nós como meros elementos do tamanho de neurônios, ignorantes em um nível abismal, cada um de nós, do pensamento do “homem” que nos carrega dentro da cabeça.

Aos poucos vamos percebendo que as sociedades secretas e teorias da conspiração, tão interessantes até talvez os anos 90, servem mais nem mesmo como lendas ou simbolismos do que pode “estar realmente acontecendo”.

A complexidade dos fatos hoje é tamanha, e a própria velocidade da informação impediria qualquer visão macro mais precisa – que o que agências de inteligência hoje podem fazer, seguindo a analogia, é mais ou menos o que um neurologista faz ao examinar nosso cérebro: inferir certas relações e prescrever certas ações. Em certos sentidos, é como meteorologia, em outros é como astrologia.

CT-Brain

Tanto há ferramentas estatísticas e embasamentos teóricos funcionais, quanto há achismo e coisas que operam num nível tão rudimentar e tão inconsciente de sua rudimentariedade que evidentemente só se sustentam por mero feedback de expectativas no desenho das pesquisas.

E não só através desse processo inconsciente, mas algumas vezes outros interesses se interpõe: a indústria farmacêutica patrocina pesquisas, e a isenção dessas pesquisas deve ser sempre objeto de dúvida. Reparemos quanto tempo a indústria do tabaco conseguiu usar o fato de que não há como provar uma relação causal direta entre o fumo e o câncer -- porque o câncer é geralmente uma doença de causalidade complexa -- e usou esse argumento de dificuldade epistêmica, durante décadas, para fazer ainda mais reféns os consumidores.

É como se até nossa paranoia coletiva se fragmentasse sem expectativa de recuperar sentido.

E o tom aqui é neutro como com os cupins, ou um acidente vascular visto como um fenômeno meramente físico. Podemos estar falando da consciência global, a singularidade ou o Deus Google, consciência artificial ou consciência histórica – e não há um juízo moral. Há um descompasso essencial entre o nível emergente e os elementos: nós – e, cada vez mais, o ambiente, e as máquinas também.

Em certo sentido, é esse ideal metafórico que na esquerda se sinaliza como fim da história e na direita como livre mercado: as visões políticas se disfarçam de seculares, mas inevitavelmente contém um cerne de ânsia espiritual. E, em certo sentido, são idolatrias a deuses mundanos específicos – formas de consciência de grupo que se espelham na forma de ideologias. Em outras palavras, tentativas sempre parciais e falhas de entender a substância emergente.

Mas não fiquemos em apenas três níveis e em questões regionais e globais.

Penetremos mesmo a Rede de Indra.

Aqui os processos emergentes ocorrem recursivamente, infinitamente.

Recursão é um termo matemático para descrever um processo de repetir itens de uma forma “autossemelhante”. Uma recursão da emergência representaria, portanto, certa noção específica de singularidade, ou ainda, uma emergência bastante peculiar e específica.

Por exemplo, em certo sentido há aquele momento na vida de alguns de nós em que nos tornamos indivíduos conscientes do próprio corpo, no sentido bem específico de não negligenciá-lo ou agredi-lo. Isto é, podemos ser bem jovens, ou bem mais velhos, mas até certa idade comemos e bebemos o que está disponível, por hábito, ou simplesmente seguimos nossas vontades mais imediatas.

Com o passar do tempo, e isso pode acontecer em qualquer idade, mas mais frequentemente se intensifica com os anos, começamos a considerar e deliberar o que ingerimos. Eventualmente até mesmo algum médico nos ordena algum tipo de dieta, de acordo com inferências baseadas em certos exames.

É claro que conhecemos pessoas que são naturalmente, por hábito, bastante deliberadas e conscienciosas com o que ingerem, e por outro lado há aqueles a que nem pressões familiares profundas e ordens médicas apocalípticas produzem qualquer efeito.

Mas, na maioria de nós, num dado ponto, nos damos conta de que precisamos desenvolver critérios de estilo de vida que contribuam para nossa saúde e qualidade de vida.

Em muitos de nós ocorre essa singularidade, em que finalmente nos percebemos em nossos corpos. Nesse sentido há um processo refletido que unifica nossos processos de pensamento com nós mesmos -- há uma integralidade, uma emergência que está além das emergências de corpo (adaptativa, genética, ligada ao meio) e mente (adaptativa, ligada a consciência e aos objetos da consciência). O mais curioso é que não operemos automaticamente, no mais das vezes, em termos da união dessas emergências numa terceira emergência, que isso precise ter um “início”, em grande parte dos casos.

Começamos a colaborar, na medida em que podemos entendê-los -- e essa medida às vezes não é muito grande – com aqueles processos que “nos produziram” por emergência.

Da mesma forma, podemos esperar que este mundo agora tão interligado por cabos e satélites comece a acordar – essa metáfora tão comum nas mídias brasileiras quando das manifestações – e deliberar por si próprio no benefício de todos. Isso pode ocorrer, ou ele pode simplesmente ter o equivalente a um acidente vascular cerebral.

Em todos os casos, nosso papel é ser o nodo mais autoconsciente e azeitado que pudermos, de forma a colaborar com os processos locais e não locais.

"Fui para o mato porque queria viver deliberadamente, encarar apenas os fatos essenciais da vida. E ver se eu não aprenderia o que ele tem para ensinar, para não, quando eu morrer, descobrir que nunca vivi". (Thoureau)
"Fui para o mato porque queria viver deliberadamente, encarar apenas os fatos essenciais da vida. E ver se eu não aprenderia o que ele tem para ensinar, para não, quando eu morrer, descobrir que nunca vivi". (Thoureau)

E significa que não entenderemos completamente os processos de que fazemos parte, e que embora nossa gama de ação não seja grande, sempre podemos fazer algo – e que não sabemos o quanto nossas pequenas ações podem impactar todos os níveis de emergência acima e abaixo de nós, mas o que todos estes níveis esperam – se eles tivessem expectativas conscientes a nosso respeito – é que ajamos da melhor forma dentro do contexto que se apresenta.

Ou seja, vivermos como um ser integrado, íntegro, todo, refletido, reflexionado e espelhado.

Bibliografia sugerida

Direta já: e se realmente colocássemos a mão na política? | WTF #6

Epigenética: além da competição por recursos | WTF #11

Deus está vivo nas fibras óticas | WTF #23

Strong and Weak Emergence, Chalmers, David J. (2002)


publicado em 31 de Julho de 2013, 07:30
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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