Já passou da hora de pedirmos desculpas a Edinanci | Mergulho Olímpico #6

Primeira judoca brasileira a disputar quatro Olimpíadas retrata o abismo do nosso preconceito

Num país extremamente desinteressado em aprender com as diferenças, Edinanci Silva foi alçada ao posto de "Geni do esporte" com facilidade. Não que o establishment do judô - nacional ou internacional - houvesse decidido cooperar:

“Ganhando medalhas ou não, vou sempre para o teste antidoping, em qualquer competição. E tem gente que ainda vem me falar: ‘Você foi sorteada para o exame'”, contou a paraibana certa vez.

Se não houve direcionamento, tantos antidopings deveriam render à ela citação no Guinness por excesso de falta de sorte. Mas a maior chance é ser o que realmente sempre foi: um empurrãozinho do status quo para fazê-la desistir.

"Tchau, querida", para lembrar os nossos nobres deputados.

A marcação firme dos órgãos reguladores deve-se ao fato de Edinanci ter descoberto, às vésperas da Olimpíada de Atlanta, em 1996, ser intersexual. Também aos traços considerados masculinos.

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Na época, aos 19 anos, após exames realizados pouco tempo antes dos Jogos, Edinanci descobriu ter testículos internos, que produziam testosterona, o tal hormônio masculino. Seguiu a recomendação médica, e foi operada. E jamais conseguiu exercer seu trabalho com o mínimo respeito que deveria.

“As pessoas acham que me abalei com a descoberta, mas a verdade é que eu já passei tanta coisa na vida que aquilo foi apenas uma migalha [...] O que eu senti mesmo foi pelos meus pais. Eles acabaram sofrendo muito com a forma como exploraram tudo", falou ao Correio Braziliense, em 2009.

Edinanci virou um case do jornalismo abutre, baixo e rasteiro. 

No boca a boca, foi alvo preferencial da intersexofobia, da xenofobia, do racismo e da ignorância.  

Edinanci foi a lembrança em rede nacional de televisão de outros 167 mil brasileiros que são invisíveis. E como é duro aos resistentes à diferença ver a glória de quem eles não querem e não se permitem enxergar.

Edinanci não tem culpa de ser quem é

Se no tatame sua carreira mostra o quanto foi importante para o esporte brasileiro - foi a primeira judoca a conseguir classificação para quatro Olimpíadas seguidas -, fora dele, Edinanci precisou desviar das mais variadas tentativas mentais de wazari, yuko e ippon que o ser humano é capaz de tentar.

A bicampeã pan-americana (Santo Domingo-2003 e Rio-2007) e medalha de bronze em dois Mundiais (1997 e 2003), nunca conseguiu sossego.

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Com isso tudo, porém, não há relatos de que tenha discutido com repórteres, recusado respostas ou levantado a voz para quem quer que seja. Não há relatos de que tenha perdido a cabeça ou deixado desacordado algum desavisado por aí.

Pelo contrário.

A notícia mais recente que se tem, segundo matéria do Portal Uol, é de Edinanci tentando dar sequência à vida universitária em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, encontrada enlatada nos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). 

"Há muitos anos que eu não estudava. Eu vejo como uma vitória pelas dificuldades que tive na vida. Outro dia fiquei nervosa na aula de anatomia. A sensação foi a mesma de quando eu disputava torneios".

E segue:

"Às vezes o pessoal do metrô lembra de mim. Mas sou tímida. Não sou muito de dar autógrafo. Gosto mais de conversar com as pessoas, ouvir o que elas têm para falar", disse.

Pode ter certeza, Edinanci. Se um dia trombar contigo num trem qualquer, só há uma coisa a ser dita:

"Me desculpe".


publicado em 04 de Maio de 2016, 00:05
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Rafael Nardini

Torcedor de arquibancada, vegetariano e vive de escrever. Cobriu eleições, Olimpíadas e crê que Kendrick Lamar é o Bob Dylan da era 2010-2020.


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