Jaquetas pretas, motores potentes e a vida sobre duas rodas

O que existe por trás da aparência agressiva dos motoclubes?

Jaquetas pretas, coletes com brasões e caveiras, barbas longas e tatuagens.

O visual nada amistoso assusta quem vê de longe.

Poucas aparições no cenário urbano são tão fortes quanto ver dezenas de homens com aparência ostensiva, montados em motocicletas, virando em sua direção no horizonte.

Existe uma uniformidade no bando, um padrão de comportamento e uma intenção oculta que desperta curiosidade.

No entanto, para quem não entende o estilo de vida dos motociclistas, a imagem forte pode confundir.

O que existe por trás da aparência agressiva é bem diferente.

As famílias e seus códigos

Como motociclistas independentes são muito diversos, cada um possuindo seus próprios princípios, a cultura e o estilo de vida sobre duas rodas tendem a ser representados com mais força pelos famigerados motoclubes.

Um motoclube não é apenas um grupo de pessoas que andam de moto juntos. Existe uma hierarquia interna e um - muitas vezes extenso - código de conduta que deve ser respeitado por todos os membros. Na maioria dos clubes, quando você está vestindo o colete as coisas não precisam seguir uma certa ordem.

Embora existam motoclubes mais casuais, a grande maioria leva bem a sério seu propósito e suas regras. É comum existirem clubes que trazem um propósito social e atividades que vão bem além das viagens sobre duas rodas.

No evento Brasília Capital Moto Week o espírito de cada motoclube ficava muito claro. Em meio aos mais de 1200 grupos que participaram do encontro era possível observar, mesmo com a semelhança da vestimenta, diferenças claras em seus propósitos.

Grupos enormes compostos apenas por mulheres, outros que surgiram com amigos de trabalho e até mesmo bandos inteiros com uma sólida base religiosa são apenas um exemplo do contraste que pude observar no evento.

No entanto, algumas similaridades entre os grupos são incríveis e merecem um verdadeiro destaque.

Ao longo dos acampamentos e instalações onde os motoclubes estavam alojados, era muito visível o clima de comunidade entre os membros e as famílias dos membros.

Praticamente todos os grupos estavam com filhos, maridos e esposas e se organizavam para realizar tudo da forma mais confortável possível.

Cada motoclube tinha seu próprio churrasco, sua hierarquia de organização e distribuição das tarefas internas. Tudo muito bem definido e dividido entre os motociclistas. A interação interna dos motoclubes nos alojamentos funciona como uma enorme casa de família, mas com uma disciplina extra para que tudo funcione em harmonia.

O que eles querem dizer com liberdade

Por muitos anos ouvi motociclistas dizerem que sentem-se livres em cima de suas motos. Lembro até de um comercial de uma marca que usava desse argumento na produção de vídeos.

Sempre acreditei que liberdade se referia por estar em alta velocidade, movimentando-se sem uma gaiola de aço e fluindo pelas estradas com mais autonomia. Mas eu estava errado, passar alguns dias com milhares de motociclistas me trouxe uma visão bem diferente do que essa liberdade representa..

Enquanto andava pelas ruas da gigantesca cidade artificial construída para o Brasília Capital Moto Week, a moça que me acompanhava apontou para um senhor grisalho, de barbas longas, colete do motoclube aberto e sem camiseta por baixo, deixando visível as inúmeras tatuagens.

O homem em questão era um juiz, explicou a moça. “Aqui as pessoas são livres para ser quem eles realmente são.”

Foi assim que descobri, em meio ao universo de roupas de couro e jeans surrado, uma expressão de liberdade bem diferente. São médicos, juízes, professores e incontáveis outros profissionais que precisam manter uma aparência mais formal durante o dia, mas que junto de sua família motorizada são livres para relaxar sem sua máscara social.

Toda essa experiência me fez entender porque cada vez mais pessoas acabam adotando motoclubes. Ou até mesmo como motociclistas independentes pegam suas motocicletas e viajam para outras cidades distantes..

Suas motos poderosas assumem o papel de um transporte para uma outra realidade, um mundo onde podem ser o que são e ir para um lugar onde ninguém vai se importar com isso.

Irmandade, respeito e postura

Em cima de suas motos os motociclistas tendem a seguir alguns comportamentos específicos: desde a forma que decidem seu posicionamento na pista, os sinais que utilizam entre si para orientarem-se em grupo e até mesmo um respeito pelos perigos da estrada.

A surpresa que tive em minha breve imersão foi saber que muito desse respeito é mantido, e até mesmo amplificado, quando estão fora de suas motos.

O respeito entre os motociclistas, mesmo os que pertencem aos outros grupos é de impressionar. Uma moto parada no acostamento poderia ser você, por que então não parar para ajudar?

É meio nessa ideia que o ambiente vira um gigantesco núcleo de postura e respeito mútuo. Todos entendem que aquela pessoa atravessando a rua poderia ser seu filho, seu marido, esposa ou amigo.

Ninguém gostaria de ter a linha do respeito atravessada, então ninguém atravessa também. Mais sério ainda é que toda comunidade de motociclistas entende a importância de respeitar as regras de convivência.

Durante o evento, um participante resolveu fazer uma brincadeira acelerando a moto até cortar o giro do motor, antes mesmo que pudesse terminar, uma centena de motociclistas já tinham aparecido para intervir e explicar que ali é um ambiente de respeito, que não existe espaço para esse tipo de brincadeira.

Intervenções contra brincadeiras que incomodam as pessoas e podem prejudicar a imagem dos motociclistas são comuns mesmo fora dos eventos especializados.

Ninguém que investe sério em algo quer ser associado com comportamentos ruins.

Mesmo em grupo o crescimento é individual

Algo que ouvi bastante é que mesmo de capacete, os sentidos ficam extremamente aguçados ao pilotar longas distâncias.

Desde o cheiro das árvores, grama e pastos das fazendas ao longo da estrada, até o impacto de pequenas mudanças climáticas, pilotar parece ser uma intensa experiência sensorial. Tudo o que existe no caminho e acontece durante viagem reflete na experiência do motociclista.

Talvez por isso cada viagem seja única e a vontade de pegar estrada nunca diminui.

As longas horas viajando acabam servindo também como um pequeno divã pessoal, permitindo pensar sobre suas atitudes e refletir sobre a própria vida. Por incrível que pareça para quem não faz parte deste meio, os relatos desse momento de introspecção são extremamente comuns.

Para quem não tem uma moto e ainda está distante deste estilo de vida, saber que todo esse universo existe abre uma perspectiva bem interessante. É tentador saber que existe um universo onde pessoas se organizam em pequenos grupos para fazer o que gostam e podem tirar de lá vantagens reais que podem ser levadas para toda a vida.

Desta vez estive no Brasília Capital Moto Week como convidado do evento, podendo sentir apenas um pouco do que esse universo pode trazer. Quem sabe nos próximos anos eu possa ir sentado numa moto e vestindo meu próprio colete de couro.


publicado em 16 de Agosto de 2018, 15:58
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Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


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