João e Maria na cama

Ela esqueceu os brincos aqui em casa. Duas argolas.

Talvez fosse a tensão da nossa primeira noite – a eletricidade sexual que causa arrepios na pele também leva o cérebro a curto-circuito. Quando se apercebeu, já estava longe, e sem o par de argolas. Eu encontrei os brincos no tapete do quarto, enquanto recolhia minhas roupas do chão.

Doze dias depois, na tarde modorrenta daquele domingo, liguei para a dona das argolas.

— Encontrei seus brincos.

— Puxa, achei que nunca mais os veria. Me custaram os olhos da cara.

— Passa aqui em casa para eu devolver.

Ela era uma mulher nascida para o sexo. Despida das roupas e do pudor, beijava minha boca fervorosamente. Para mim, ela era uma espécie de religião.

Trepamos até não sabermos mais de quem era qual mão, qual braço, qual pé. Mas havia algo além disso.

Foi a primeira vez que pensei em esquecer minhas outras mulheres.

Foi a primeira vez que pensei em casamento.

***

Naquela noite de domingo, novamente encontrei brincos no chão. Um par de corações feitos de opala. Foi então que tive uma epifania:

— Estamos brincando de João e Maria.

Ela deixava migalhas em forma de brincos no chão para encontrar o caminho de volta. Mas nessa nossa versão particular e luxuriosa da história, um devoraria o outro. Sem carochinha.

Quinze dias se passaram, tempo suficiente para minha Maria imaginar que eu pudesse não ligar mais. No jogo da sedução, o suspense é uma arma – o frio na barriga instiga ainda mais o quente do sangue. Saí com outras duas mulheres – uma delas, a morena índia esculpida e talhada à luxúria que trabalha no escritório em frente ao meu. Ia sair com uma terceira, mas minha Maria ligou.

— Acho que esqueci meus brincos na sua casa. Que cabeça a minha... Posso passar aí para apanhá-los?

Ela passou.

A noite passou.

A manhã passou.

Nós não passamos. Ficamos ali, na cama de lençol amarrotado por um dia inteiro, remoendo um desejo sem fim. Saíamos apenas para ir ao banheiro e á cozinha comer qualquer coisa, e logo voltávamos para o colchão.

No dia seguinte, meus pés pisaram duas plumas. Doeu a tarraxa fincando na sola. Era um novo par de brincos.

***

— Oi. O que vai fazer hoje?

— Nada.

— Vem em casa.

Ela chegou com fome, com fúria. Me apertava ainda no hall do prédio. Mordia. Machucava. Marcava. Cravava as unhas nas minhas costas. No quarto, berrava palavrões, me xingava de puto, me dava tapas. Mesmo esgotado, eu a desejava com cada fibra de músculo do meu corpo. Corpo este marcado pelas unhas de Maria, que me rasgara a carne e me roubara a alma.

Estávamos exaustos, mas nunca saciados. Aquela mulher deitada ao meu lado e divertindo-se com nossos corpos cansados haveria de ser minha.

— Estive pensando.

— Em quê? – ela perguntou, fechando sua pequena mão na minha

— Nisso. Em como nossas mãos se encaixam.

— Bobo. A gente se encaixa em tudo.

— Casa comigo?

Ela sorriu um sorriso redondo. Disse "sim" com um beijo.

O primeiro beijo como minha futura mulher.

O último também.

Quando entreguei o par de brincos de plumas a ela, Maria fechou a cara, apenas disse "não são meus" e bateu a porta na saída. Nunca mais retornou. Deve ter perdido o caminho de volta.


publicado em 03 de Março de 2012, 21:01
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Rodolfo Viana

É jornalista. Torce para o Marília Atlético Clube. Gosta quando tira a carta “Conquiste 24 territórios à sua escolha, com pelo menos dois exércitos em cada”. Curte tocar Kenny G fazendo sons com a boca. Já fez brotar um pé de feijão de um pote com algodão. Tem 1,75 de miopia. Bebe para passar o tempo. [Twitter | Facebook]


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