John Stuart Mill e a dura tarefa de ser feminista

E se você fosse responsável por defender as ideias mais idiotas do mundo? Coisas absurdas e impopulares como o fim da escravidão, o boicote econômico de países escravistas ou, pior, a igualdade de direito para as mulheres.

E se fosse com você?

John Stuart Mill (Londres, 20 de Maio de 1806 — Avinhão, 8 de Maio de 1873) é outro desses autores inconvenientes obrigatórios e irrelevantes. No Brasil, só a galera do fundão dá atenção para a obra do cara. Fundador do clube de machos feministas, ele tem no seu currículo apenas um casamento e uma vida inteira dedicada a idolatrar a mesma mulher, a esposa de um amigo.

Pode isso, Arnaldo?
Pode isso, Arnaldo?

Como teve que esperar o compadre morrer para casar com a comadre, foi fadado a uma vida bastante mulherenga, segundo os bastidores da história da filosofia. Mas ninguém provou isso até hoje.

Entre as mulheres, Mill não se preocupou apenas em apontar a submissão escravocrata de um sexo frente ao outro, ainda buscou compreender como a exigência da obediência vinha acompanhada de uma perturbável reclamação por afeição. Esse bebedor do chá é a melhor representação do feminismo pelas razões corretas: humanistas e liberais. Trata-se de um feminismo nu, sem os vícios do capitalismo desenvolvido e do comunismo xiita, marcas do século passado.

No coração da Revolução Industrial, as mudanças econômicas e urbanas foram apenas lentamente acompanhadas por mudanças culturais. Com a abolição definitiva da escravidão na França e nas suas colônias, em 1794, foram as mulheres inglesas quem primeiro compreenderam a importância humanitária de acabar com o trabalho escravo nas colônias que a Europa mantinha na América e nas Índias. Tardiamente, o iluminismo vinha fazendo algum sentido.

Diferente daquilo genericamente apontado por grande parte dos responsáveis pela confecção dos livros didáticos de História no Brasil, não foi apenas um interesse capitalista comercial vago que motivou o fim da escravidão no nosso país em 1888. Donas de casa e confeiteiras inglesas, motivadas pelas posições abolicionistas da rainha Vitória e pela posição liberal de intelectuais da época, iniciaram uma forte panfletagem e um boicote ao açúcar produzido por nações escravocratas. O florescimento de movimentos que apregoavam os direitos humanos e a expectativa de levar em consideração um leque mais abrangente de interesses estava em discussão.

Como jornalista, o próprio Mill publicou artigos defendendo a abolição, da escravidão e o direito dos negros africanos: Occasional Discourse on the Negro Question, 1849. Mas, muito antes disso, devemos agradecer o fim da escravidão na América especialmente às mulheres inglesas que sacrificaram o açúcar do chá das cinco. Mill circulou nesse contexto e bebeu muito do romance vitoriano do seu século, e isso fez toda a diferença para ele estabelecer uma base intelectual mais sólida para o feminismo.

Muito diferente do feminismo que o sucedeu.

O feminismo de Mill: tradição utilitarista na vanguarda

"A lógica de Mill; ou franquia para as mulhreres"
"A lógica de Mill; ou franquia para as mulhreres"

Mill não é um autor de tradição na filosofia crítica. Suas principais e mais estudadas obras, On Liberty (1859) e Utilitarianism (1861), tem um caráter construtivo e buscam alicerçar as bases da filosofia política e moral do liberalismo contemporâneo.

On Liberty tem a pretensão de estabelecer o princípio da liberdade pela argumentação de que não podemos tolher a liberdade alheia sem uma justificativa calcada no princípio da utilidade. Por sua vez, Utilitarianism pretende estabelecer uma teoria ética fundamental para o ajuizamento das ações morais, tornando o princípio da utilidade um critério indispensável na tentativa permanente de potencializar a felicidade do gênero humano.

No entanto, grande parte das publicações do autor em jornais e revistas da época foi negativa, crítica aos sistemas legais e aos modelos culturais da Europa industrializada com hábitos ainda feudais. O que o feminismo tem com isso tudo?

The Subjection of Women é uma dessas publicações de caráter crítico. Mill não pretende reclamar a igualdade legal para o sexo feminino com argumentos positivos em prol de uma perfeita igualdade de direitos e deveres. E esse o ponto onde o leite verve e uma reivindicação justa perde o sentido prático. Ao contrário disso, o utilitarista buscou fazer com que o ônus da prova recaia sobre aqueles que são contra os princípios da liberdade e da igualdade. O autor considerava que se precisamos de alguma pressuposição a priori, ela deve ser a favor da liberdade e da imparcialidade:

[...] supõem-se que o peso da prova seja de quem é contra a liberdade: quem luta por alguma restrição ou proibição – alguma limitação da liberdade de ação humana em geral, ou alguma desqualificação qualquer  ou disparate de privilégios que atinge uma pessoa ou um tipo de pessoas, quando comparadas com outras. A pressuposição a priori é a favor da liberdade e da imparcialidade. Assegura-se que não se deve restringir nada que não seja contrário ao bem comum, e que a lei não deve restringir as pessoas, e sim deve tratá-las todas como iguais, salvo quando a diferença de tratamento é requerida por razões positivas, seja de justiça ou de política.
(CW XXI:262)

Ninguém é tão ruim que não possa piorar. Ninguém é tão mau o tempo todo. Nas palavras de Mill:

Demônios absolutos são raros como anjos, até mais raros: selvagens furiosos, ocasionalmente abalados de humanidade, são, entretanto, muito frequentes.
(CW XXI:288)

O método de elaborar filosofia prática utilizado pelo autor leva em conta o comportamento humano de uma maneira bem peculiar. Ele pensa que os problemas de ordem ética podem ser superados, acredita em um desenvolvimento moral permanente e constante, e observa o comportamento de uma geração a partir de fatos genéricos. No caso da submissão do mais frágil, o comportamento padrão é que os homens reservam seu lado mais violento para aqueles que não estão em condições de lhes contrariar.

Estátua de Mill em Temple, região central de Londres
Estátua de Mill em Temple, região central de Londres

A capacidade das mulheres para se tornarem perversas, normalmente, é limitada a uma contra-tirania e suas vítimas são os maridos com menor propensão ao cargo de tirano.

Mill foi o primeiro membro do parlamento britânico e, podemos dizer, de uma democracia moderna a advogar em prol da causa feminina. Na sua autobiografia, publicada postumamente, o autor se refere ao período em que lutou pelo sufrágio feminino e salienta a pertinência da discussão naquele momento histórico:

Minha luta pelo sufrágio feminino e pela representação pessoal, foi vista como um mero capricho individual, mas o grande progresso, desde então, feito por essas opiniões e especialmente a reação motivada, em quase todas as partes do Reino, pela demanda do sufrágio às mulheres, justificam completamente a oportunidade daquelas declarações, e se tornaram um empreendimento pessoal, tomado como um dever moral e social.
(CW I:275s)

A impopularidade dessas ideias era tão grande que Mill não estava mais nem no suco quando as mulheres votaram na Inglaterra pela primeira vez, em 1919, só depois da primeira guerra. Antes disso, o espaço público era restrito. As leis eram feitas e julgadas pelos maridos. Apenas os casos de extrema violência, com alguma possibilidade de chocar o público, eram vistos como exceção à regra geral:

Pessoas irracionais ou hipócritas, que consideram apenas os casos extremos, podem dizer que os males são excepcionais; mas ninguém pode ignorar a sua existência, nem, em muitos casos, sua intensidade; é perfeitamente óbvio que o abuso de poder não pode ser realmente controlado, ao menos enquanto o poder permanece.
(CW XXI:323)

Depois do falecimento da sua única esposa, Mill usou a experiência para colocar novas cartas no carpete. A proposta dele envolvia um preceito de plena igualdade no casamento em virtude da desigualdade não possuir justificativa alguma. Mas o autor estava permanentemente preocupado com a maleficência prática da desigualdade e a ligava imediatamente à injustiça no contexto das relações.

"John Stuart Mill ensinou que a felicidade do indivíduo é fundamental. Ele não citou nomes, mas eu acho que você e eu somos o tipo de indivíduo que ele tinha em mente"
"John Stuart Mill ensinou que a felicidade do indivíduo é fundamental. Ele não citou nomes, mas eu acho que você e eu somos o tipo de indivíduo que ele tinha em mente"

Para ele, o casamento era a mais difundida forma de relacionamento humano e as vantagens de regular o matrimônio por um preceito de justiça, em detrimento da injustiça, eram evidentes. Havia benefícios claros na ideia de que um rapaz poderia se tornar adulto buscando elogios pelos seus próprios méritos e esforços ou sabendo que se fosse uma pessoa com comportamentos frívolos seria censurado, independente da sua condição ao nascer. Os únicos elementos proeminentes capazes de conferir direitos e respeito dizem respeito ao comportamento.

Não se trata do que os homens são; mas do que eles fazem. Só isso pode autorizar sua pretensão à consideração dos seus iguais. Apenas nesse sentido, é possível reverter comportamentos praticamente patológicos, como aquele que apontamos na primeira frase desse texto: é impossível compreender uma forma alterar drasticamente tanto a sujeição feminina, quanto a sujeição dos sentimentos reclamados por muitos opressores, no sentido de “ame-me, enquanto te maltrato”.

No caso da união entre casais, admitindo uma propensão espontânea entre os pares de estabelecer relacionamento, existe um ditado geral de que as diferenças são responsáveis pela aproximação. A ideia de que “os opostos se atraem” não pode ser responsável pela legitimação da diferença permanente entre marido e esposa.

Mesmo que personalidades diferentes sejam atrativas entre si, a manutenção da sanidade na relação depende da igualdade.

As diferenças inevitáveis de caráter, temperamento e mesmo as diferenças físicas não devem representar uma desigualdade de poder que só tende a potencializar injustiças. Se os opostos se atraem, é a igualdade que mantém a união. Uma sociedade íntima entre pessoas radicalmente diferentes uma da outra é um sonho bisonho.

Diferenças podem atrair, mas é semelhança que conserva: e na proporção das semelhanças está a adequação dos indivíduos para dar a cada outro uma vida feliz, assevera Mill. A profunda liberdade de associação que Mill pregou em On Liberty já previa que as semelhanças são responsáveis pela verdadeira identidade na busca de interesses comuns. Nas questões envolvendo o matrimônio o princípio da associação não é especial ou diferente.

É nas identificações que os interesses se convergem. As pessoas não se casam esperando por tolerância mútua, mas visualizam um projeto comum de vida.

* * *

Toda obra do Mill, da qual eu tirei as citações, está no site Online Library of Liberty.


publicado em 23 de Maio de 2013, 10:00
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Everton Maciel

Everton Maciel é gaúcho e não suporta bairrismo. Só tolera bares que não permitem camisas polo. Nasceu jornalista, mas fez mestrado em Filosofia e mantém um blog próprio, o Blog do Maciel. Tem Facebook e Twitter


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