Lance Armstrong responde: os fins justificam os meios?

O ano de 1996 não foi bom para a vida de Lance Armstrong.

No ano anterior, após algumas vitórias importantes, estava começando a se destacar no ciclismo. Havia vencido torneios importantes e alguns estágios na Volta da França. Em 1996 a carreira parecia que ia decolar, havia vencido de novo a prova mais importante da Bélgica e, apesar de uma participação modesta nas Olimpíadas de Atlanta, foi convidado a integrar uma equipe famosa de ciclismo.

O futuro parecia promissor. Então ele foi diagnosticado com câncer nos testículos e teve de ficar em tratamento por 2 anos.

Em 1998, voltou a competir, e no ano seguinte atingiu a sua maior glória até então: venceu a corrida mais prestigiada do mundo, a Volta da França, e foi capa em revista, telejornal e provavelmente um hype do Facebook se este existisse no século passado.

Armstrong, porém, queria mais. Engatou uma série de 7 conquistas consecutivos na Volta da França, se tornando o maior ciclista de todos os tempos. Criou o projeto Livestrong, das famosas pulseirinhas amarelas pela luta contra o câncer. Se aposentou em 2005, no seu auge.

Era um Schumacher que pedalava.

Em 2009, inquieto, decidiu parar com essa história de aposentadoria e voltou ao esporte que o idolatrou. Se 1996 não foi um ano bom, este 2012 conseguiu ser muito pior: o ciclista foi suspenso pela agência norte-americana anti-doping.

Não apenas suspenso, mas banido do esporte para sempre. E todos os seus títulos foram confiscados.

Nas palavras da agência, o relatório (que você pode ler aqui) mostra sem sombra de dúvida que a equipe de ciclismo de Armstrong executou o programa mais sofisticado e bem-sucedido de doping que se tem notícia.

Hoje, é como se Lance nunca tivesse existido para o esporte.

A própria indústria do esporte estimula, silenciosamente, o doping

Temos que ser justos com Lance Armstrong em um ponto: boa parte de seus competidores provavelmente também praticaram doping durante suas carreiras.

Aliás, maior parte dos atletas de alta performance o faz de uma forma ou outra. Nem que seja para "aquele período em que esteve fora de competições".

A pressão para usar drogas e, com isso, aumentar o desempenho, é grande entre os atletas de nível mundial. Principalmente porque são profissionais que dependem de vitórias para manter seu padrão de vida. Se o desempenho cai, perdem também os patrocinadores e vão ter de procurar um "emprego comum".

O Alberto Brandão falou sobre isso com propriedade no artigo Doping: a suja verdade do esporte profissional, aqui do PdH.

"O atleta é como um grande outdoor: quanto melhores os seus resultados e conquistas, mais marcas querem aparecer estampadas no seu uniforme e mais empresas usarão sua imagem como propaganda.

Alguns atletas mantêm contratos com clubes, o que facilita em alguns pontos, mas por outro lado, são apenas funcionários, e se os números não forem bons, o emprego estará comprometido. [...] quanto melhor o competidor, maior o fardo a ser carregado."

Em uma pesquisa de 1984, 61% dos atletas confirmaram que haviam utilizado esteroides anabolizantes nos últimos seis meses.

Mesmo se feito por todo mundo, doping é trapaça. É como vencer uma partida de Call of Duty online usando cheats. É como roubar no poker e dar uma de joão-sem-braço quando recebe o troco errado. Funciona, mas não é bacana. Não é certo.

Os fins (não) justificam os meios

Um dos pontos mais lembrados do trabalho de Maquiavel é o argumento de que "os fins justificariam os meios". Ou seja, valeria a pena trapacear se for para ganhar alguma coisa. Valeria a pena colar na prova para passar de ano e enganar o chefe para aumentar o salário. Simular falta para ganhar pênalti.

Mas vale mesmo? Qual é o sabor da vitória quando é necessário trapacear para vencer? E se, como no caso de Armstrong, todo mundo já está trapaceando? Vale a pena trapacear também?

Esta é claramente uma decisão difícil e pessoal. Vai muito dos valores de cada um. Eu concordo com Miroslav Klose, provavelmente o melhor jogador alemão do futebol: definitivamente os fins não justificam os meios. Não mesmo. Para ele, não vale a pena ganhar um jogo com um pênalti roubado ou mesmo com um gol de mão.

Também vale contar quando a vantagem foi roubada em nosso favor

Klose jamais seria o protagonista do "gol da mão de deus" de Maradona. E também não teria ganho a Copa de 1990 em cima de Maradona simulando um pênalti.

Há dois casos muito notórios em que Klose achou que não valia a pena o custo moral do benefício. Na primeira ocasião, o árbitro da partida entre Werder Bremen e Arminia Bielefeld marcou um pênalti sofrido por ele e deu cartão amarelo para o goleiro. Para completa surpresa dos seus companheiros de time, Klose foi até o árbitro e disse "o goleiro pegou a bola antes de eu encostar nela, não foi pênalti". O juiz da partida agradeceu, retirou o cartão amarelo e desfez a marcação de pênalti.

O segundo caso é mais recente e ocorreu numa partida entre Lazio e Napoli. Numa cobrança de escanteio, a bola pegou em sua mão involuntatariamente e entrou no gol. Enquanto os colegas da Lazio comemoravam o gol, já referendado pelo árbrito, o bom garoto Klose foi ao juiz dizer que a bola pegou em sua mão. No final, seu time perdeu por 3x0.

Nem todo mundo foi feito para ganhar

Esporte de alto rendimento é o contrário de saúde.

Eu treinei Kung Fu profissionalmente durante 5 anos e hoje, aos 32, pareço um homem de 50, com ossos quebrados, lesões na lombar, cervical, dedos encurtados, dentes quebrados, tímpano estourado, maxilar solto etc. Esporte de alto rendimento PREJUDICA a saúde.

Tomei infiltração de cortizona no joelho pelo menos trinta vezes, quando o recomendado a um homem adulto é uma aplicação por ano. Eu tomei mais de 30 em três anos, e hoje já operei o joelho três vezes; e subo uma escada igual um velho.

Enquanto isso, a galera que treinava três, quatro horas por semana, se mantinha sarada, com barriga de tanquinho e esbanjando saúde. E nós todos quebrados. Vale a pena, mas o preço é mais alto do que se o atleta fosse um sedentário. Em nível olímpico então, nem consigo imaginar.

Leo Luz, autor do PdH, dando seu depoimento pessoal na acalorada discussão que originou esse artigo

O corpo humano tem um limite, e, ao trapacear, alguns atletas conseguem ir muito além do que seriam capazes normalmente. E vencem, talvez até aquele sujeito excepcional que não está fazendo uso da mesma substância. Ou que não teve oportunidade de simular um pênalti. Talvez exista um bom motivo para que algumas pessoas não ganhem sem trapacear: elas talvez não sejam boas o suficiente.

Digamos que Armstrong nunca tivesse se dopado. Ele provavelmente não seria relevante o bastante para aparecer neste site. Assim como um fulano qualquer que precisou colar para ser aprovado no vestibular provavelmente será incapaz de se tornar um bom profissional.

Uma posição absoluta, como "os fins nunca justificam os meios" pode parecer radical para alguns. Mas é o mundo em que gostaríamos de viver. Se ele é possível, já são outros quinhentos.


publicado em 19 de Outubro de 2012, 10:04
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Daniel Bender

Jornalista, Diretor de E-commerce e Caçador de Descontos no 1001 Cupom de Descontos. Sempre disponível para conversar no boteco.


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