Lollapalooza: como aproveitar um festival

Cacete. Como começar a escrever com a cabeça pesada, ouvido ainda zunindo e a completa discrepância entre corpo destruído e mente relaxada, quase preguiçosa? Hemingway dizia pra escrever bêbado e editar sóbrio. Já comecei tudo errado.

O PapodeHomem foi convidado pela Heineken para cobrir os três dias do maior festival atualmente. Foram 80 shows, pelo menos 40 toneladas de equipamento em cada palco, 1,2 km  de distância entre os principais palcos -- o Butantã e o Cidade Jardim --, 203 mil litros de chopp em estoque. Uma corrida em meio ao caos e a lama (que me perdoe o Chico Science pela parafraseada).

Foto linda que roubamos (com todos os carinhos) da @lalai no Instagram

Para pagar R$300,00 por dia, há que se ter certa estrutura física, musical e verdadeira experiência de vida para aproveitar, de fato, o que um evento desse porte tem para oferecer. E como aproveitar ao máximo?

Abraçando a ideia de festival.

Um Lollapalooza é mais que mero evento de ver a banda querida, de entrar no espaço e ficar 4, 6, 8 horas esperando colado na grade pra ver o headline. Não desmerecendo quem o faça -- são infinitos fatores que formam incontáveis possibilidades pro pagante --, mas existe todo um mundo a ser explorado.

No quesito organização, parece que eles aprenderam com as cacetadas do ano passado. As filas para entrar foram bem menores (mas ouvi muita gente reclamar, no primeiro dia, da demora na fila de quem retirou os ingressos comprados na Internet), banheiros e pontos de venda também não viraram martírio e ficaram apenas os grandes pontos de alagamento e lama que complicaram o caminhar da multidão e prejudicaram alguns pontos perto de palcos (o que é bem ruim). Noves fora, parece que tudo correu bem.

O primeiro dia e como se ambientar num festival

O sol não dava nenhuma trégua quando chegamos, pouco depois das 13hs. Pouca gente ainda, tudo novinho em folha, alguns gritinhos tímidos pra agraciar as primeiras bandas a subir nos palcos. Fomos direto pra apresentação dos amigos do Tokyo Savannah no palco Alternativo. Destruíram. Chamaram o pequeno amontoado de pessoas confusas que começaram a ver ali um ótimo sentido pra ter chegado cedo. Daí pra frente, era entender um festival.

O grande segredo do sucesso do Lollapalooza como festival é a inteligente disposição de tudo. Eu já fui ao SWU, ao TIM Festival (só pra exemplificar bem) e ambos tinham uma falha crucial para essa pegada de festival: um tinha dois palcos colados, lado a lado e o outro, apenas um palco. Isso transforma completamente a coisa porque tudo se resume a estocar comida e água, achar um bom lugar e ficar esperando a próxima banda. No Lollapalooza, é preciso aceitar e aproveitar a mobilidade, mexer o traseiro de um palco a outro, andar quilômetros por dia pra conseguir acompanhar tudo o que se quer ver.

A roda gigante da Heineken, bem no coração do Jóquei

Isso gera sensações, experiências.

O primeiro dia era, particularmente, o mais folgado para mim. Não tinha nenhum nome expressivo pra minha gana musical e, com isso, pude aproveitar bastante a caminhança, a visão. Ver muita, mas muita mulher bonita, menininhas sorridentes com pele de fora, botas, pinturas corporais e faciais, aquela brincadeira toda gostosa. Nisso, de ser puxado pelo gracejo feminino, cheguei ao palco da Pitty e seu projeto Agridoce. Foi uma felicidade muito inesperada. Não tinha expectativa alguma, mas, ao colar mais perto do palco, me encantei com centenas de pessoas sentadas na grama, em toalhas, amontoadas, deitadas olhando pro céu, pro palco, cantando junto, só que de costas, olhando as pessoas que chegavam. Não acontecia pressa, não existia a necessidade fã/celebridade musical da proximidade.

Ela (a Pitty) estava serena, cantando gostoso, arranjos bem bonitos, um cover de "Across de Universe" dos Beatles e tava lá, a baiana tatuada me ganhara pelo aconchego sonoro. Depois disso, o segredo estava em seguir sempre em frente, abraçando qualquer convite do festival. Vi o palco Perry de música eletrônica, ri de ver marmanjos (inclusive eu) sendo barrados no Kidzapalooza -- espaço musical só pra crianças, onde a molecada inferniza enquanto os pais vão curtir o festival -- com a oficina de bateria do Iggor Cavaleira, um ogro ensinando delicadamente a meninada a destruir uma bateria. Delícia de ver. Na volta, vimos um palco patrocinado com uma banda bem boa, empolgada, tocando pra algumas dezenas, voltei ao palco Alternativo, na hora da chuva rápida que passou por lá, pra sacar qual era do Copacabana Club. Não me decepcionei. Menininhas se divertiram  a beça e lá apareceu, pelo menos pra mim, o primeiro protesto que se espalhou pra vários shows ao longo dos três dias: "Fora Feliciano".

A melhor coisa desse primeiro dia foi o despretensioso caminhar atrás de coisas interessantes de ver, a liberdade de ir e vir e parando pelo olhar, pelos ouvidos, e não pelo planejamento organizacional de ver os shows "importantes" do dia. Eu não gostava do Cake até vê-los ao vivo no fim da tarde. Uma grata surpresa que, se fosse pelo agendamento mental, eu não veria.

Tava ali sedimentada, em mim, a tal vibe de festival.

Segundo dia de Lollapalooza e a correria de line-up

Fim de tarde, pôr do sol e Alabama Shakes

Mas ninguém é de ferro. Se era pra ter um dia de aceleração mecânica, o segundo dia foi o escolhido da vez. Toro Y Moi (que muita gente diz ter sido um show fraco) fez algo semelhante ao Agridoce: deixou o festival com cara de festival, despretensioso, dançante, livre e leve. Daí começou o fardo de gostar pra cacete de música. Às 15:30 do sábado, subiam ao palco -- juntos, mas separados -- o Gary Clark Jr. (no Alternativo) e os velhacos do Tomahawk com seu front man, apenas o Mike Patton, o "homem das mil vozes". O jeito foi se separar. Saí correndo pra ver (e tomar) as pancadas do grupo do Patton enquanto o Luciano ficou pra ver o groove do "homem da hora", Gary Clark. Ninguém se arrependeu.

Outra coisa boa de festival é saber escolher as companhias. Amigos são sempre legais, mas precisa praticar o desapego, a solitude no momento do show. Quem quer ver vai ver o que quer ver e, quando for propício (e, sim, há muitos momentos assim), só juntar todo mundo de novo que o que não faltava era cerveja pra tomar.

Acabados os shows, corre pra ver Two Door Cinema Club. Mas só um pouquinho porque o Alabama Shakes já tá terminando de arrumar o palco pra subir pontualmente às 17:30 pra fazer um dos melhores shows dos três dias. Finzinho de tarde, o sol descendo manso, aquele laranja bonito e a vocalista dos Alabamas, Brittany Howard, cantando absurdamente bem, interpretando fodamente bem e deixando todo mundo -- mesmo -- numa elevação musical, de espírito, de inveja do bem, de qualquer subterfúgio possível que possam imaginar. Mas que ela botou todo mundo na palma da mão, ela botou.

Mas o tempo é implacável nesses dias cheios de coisas imperdíveis, mesmo quando se sabe que algo tem de ser sacrificado. Franz Ferdinand ficou pra trás.

Subia ao palco Cidade Jardim, depois de um ano e meio sem tocar ao vivo, o Queens of the Stone Age. Pancadaria, amor selvagem, gritaria feminina e testosterona escorrendo pelo barro. Foi essa catarse toda, na galera que se aglomerava e nos integrantes do QOTSA, incluindo Josh Homme, o "Elvis ruivo". Novamente, a separação foi necessária. O Luciano foi conhecer os caras do A Perfect Circle enquanto eu fui me abrasileirar mais um pouco com o Criolo. Parece que eu acertei.

Fiquei sabendo, mais tarde, que o Luciano achou o lado de lá bem ruim e voltou pra ver o paulistano do Grajaú também. Curtiu tanto quanto eu. É o tambor, é o versado do rap disfarçado de bolero, de afrojazz nigeriano, de samba, de ancestralidade samurai. O Criolo tem carisma transbordando pra deixar todo mundo que olha pro palco dele colado. Mas ainda tinha correria. Atrás do povo ia começar o Black Keys.

Terceiro dia era a batalha contra a derrota

Kaiser Chiefs, mas visto por outro ângulo

Pernas pedindo arrego, pescoço duro, voz cansada. Acordar mais tarde é preciso, acompanhar o festival logo cedo não é preciso.

Baita mentira. Pra quem queria chegar no começo da noite, entrar no Jóquei pouco depois das 15hs foi uma vitória, além de muito produtivo. A convite da Heineken, conseguimos entrar no backstage junto com a entrada do Kaiser Chiefs no palco Butantã. Uma visão única do mar de gente que se gruda pra tentar ver melhor, escutar melhor e sentir melhor todas as brincadeiras do Ricky Wilson, vocalista da banda britânica. Um corredor nato, ia de um lado pra outro, jogava o pedestal pro alto, brincava com uma meia lua, interagia com as câmeras, se pendurava bem em cima do público, pulava, cantava, enfim, fazia todo o entretenimento. Era o que a meninada queria.

Depois, descanso. Festival é isso, é saber abdicar. Ouvi o The Hives de longe (disseram que eles estavam bem elegantes). Deixei o Hot Chip pra trás e fui ver o Planet Hemp provar porque merecia fechar o festival no palco Butantã. Marcelo D2 e BNegão, juntos, abrangem o palco todinho, transbordam o espaço retangular e cospem protestos, defesa da legalização da maconha, chamam o hardcore pesado da banda, engrandecem a guitarra absurda que o Planet Hemp cultivou nos anos 90.

Sorte que o tempo foi generoso. A essa altura, sem chover sábado nem domingo, muitas das poças de água e armadilhas gigantescas de lama tinham perdido a maior parte de sua periculosidade. Isso ajudou a diminuir as distâncias, isso contribuiu para chegarmos com maior facilidade ao outro lado do Lollapalooza, no palco Cidade Jardim, pra ver o Pearl Jam.

Uma noite pra se lembrar. Uma banda com competência de sobra, um som muito bom de se ouvir, mesmo à distância, uma noite muito bonita, pessoas emocionadas, uma lua grande, gorda, digna de pura contemplação despontou em meio aos prédios da Marginal Pinheiros e veio fazer companhia.

Aposto que ela também veio ver Eddie Vedder e companhia fechar brilhantemente o Lollapalooza Brasil de 2013.

Por mais que fosse domingo, fim de festival bom é assim. Acabam-se as músicas, permanece a catarse. Sem entender direito o que havíamos presenciado, restou ao Luciano e eu sentarmos no chão, calados, decodificando a porra toda, todo o significado das últimas 72 horas de anotações mentais, imagens gravadas na cabeça, a retrospectiva de tudo o que foi, de tudo o que poderia ter sido e conseguiu ser.

A lua

Quando acaba mesmo um festival

Daí que eu entendi, de uma vez por todas, que tornar um festival como esse algo maior como ele se propõe, basta mergulhar fundo, mas sem esquecer do desapego pela obrigação de ver todas as bandas. Brincando brincando conseguimos ver 18 shows em três dias. A graça toda foi aproveitar bem o espaço entre essa quase dezenas de apresentações.

Pra se ter ideia, o festival não seria o mesmo se, ao final depois de quase duas horas de finalizado, não tivéssemos entrado no táxi que entramos, com um motorista de 54 anos que gosta de fumar maconha no carro quando tá indo pra casa, ouvindo Sérgio Reis, se desculpando por isso por pensar que éramos "do rock" e, pra se sentir parte do grupo, contou que quando moleque dormia em porta de clube pra ver o Raul Seixas tocar.

Já entrosados, ele contou que, certa vez, ele passou em frente ao prédio onde o Maluco Beleza morava e viu que ele bateu o Opala dele num portão e que, de raiva, o Raulzito jogou um bujão de gás no meio da rua. "Já que ele não queria, eu fui lá, peguei o bujão da rua e levei pra casa". Foi presente de um maluco beleza pra outro maluco beleza.

Me despedi ao chegar em frente do meu prédio, disse pra ficar com deus e, enquanto eu ia comer, morto de fome, lá foi o taxista gente boníssima tentar pegar uma corrida pra Osasco, que rende 50% a mais por ser intermunicipal.

Que final de noite memorável.


publicado em 01 de Abril de 2013, 21:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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