Mãe, não quero ser puta

Minhas primeiras lembranças sobre o rótulo de puta remetem ainda aos anos de escola, época em que minhas preocupações mais latentes giravam em torno de dilemas complexos do tipo “com-quem-vou-sentar-junto-no-ônibus-da-excursão?”. Eu nem pensava em beijar meninos – fato que ocorreu uns bons cinco anos depois –, mas os assuntos nas rodinhas entre uma explicação de matemática e a conjugação do eterno verbo to be já apontavam para ela, a galinha da sala.

Sem peito, já puta.

Lembro me que não entendia muito bem qual a relação entre uma galinha e o fato de uma menina ter beijado alguns meninos na boca, mas logo fui apresentada à definição que não consta no Aurélio:

Galinha s.f.
Menina amiga de muitos meninos que comete o ultraje de ficar com dois garotos do mesmo grupinho e que, segundo as más línguas, permite a um ou mais deles passar a mão nas proximidades dos seus peitinhos que começam a brotar tais quais pequenas laranjinhas.

Seu nome era Gabriela. Eu gostava dela. Não me interessava muito o que ela fazia fora dali – mas o rótulo de "galinha" assumiu sua antiga identidade. Antes que eu me desse conta, me peguei também olhando-a e imaginando como conseguia ser tão lasciva. Por causa de sua nova identidade, Gabriela foi excluída das rodas das meninas e os meninos cada vez se aproximavam, sempre com as mesmas brincadeiras cheias de duplo sentido. A partir daí, concluí que não queria ser uma puta.

Pernas cruzadas

O fantasma da puta me assombrou durante toda a adolescência. O mesmo acontecia com minhas amigas. Ninguém queria ser vista como fácil e a regra era: mesmo se estiver com vontade, cruze as pernas. Ficar com dois meninos da sala, jamais! Da escola, só se ninguém mais soubesse. As mãos mal-intencionadas dos meninos com hormônios explodindo tinham que ficar longe das nossas bundas e de nossos projetos de peito. Eram as regras básicas.

Fui crescendo e, apesar das regras terem evoluído, ainda via o fantasma da puta assombrando minha vida e a vida das mulheres ao meu redor. Agora o papo era outro e envolvia questões do tipo: "se estiver com vontade de dar no primeiro encontro, vá embora e bata uma sozinha em casa", "se gostou muito, não ligue", "não fique com mais de um cara no trabalho", "sexo anal desmoraliza a mulher", "ser safada na cama assusta os homens". Se ele sumia do mapa, sempre tinha a amiga pra dizer:

— Não disse? Você foi fácil demais.

Quem ditava as regras eu não sei dizer, mas elas existiam como parte de um manual invisível para não se tornar “mal-falada”.

Quando comecei a questionar o que queria da vida, me toquei que as regras do tal manual invisível não passavam de balela. Mas constatei que ele fez parte da minha adolescência e ditou, de certa forma, minha forma de me relacionar com os homens.

Pernas sempre cruzadas para não ser confundida com uma vadia.

Um puta peso de puta

Conversando sobre esse assunto com uma amiga, escutei-a confessar, cheia de remorso, sobre o dia em que, durante uma festa, deu para um cara de quem nem sabia o nome. Foi, usando suas próprias palavras, a melhor foda de sua vida. Mas depois ficou sabendo que o cara espalhou para os amigos que tinha transado com ela na lavanderia da casa. Eis que o fantasma da puta novamente entrou em cena: escutei-a dizer – podendo jurar que via um princípio de lágrima querendo brotar nos seus olhos – que se arrependeu horrores de ter sido tão puta naquele dia, que não queria se sentir assim nunca mais na vida.

Fiquei me perguntando qual a fonte do arrependimento dela – porque se o sexo tinha sido bom e se ela tinha sentido prazer, o sofrimento pós-foda não poderia ter vindo de motivações pessoais. E aí entendi o peso que o rótulo da puta exerceu sobre a vida de nós todas, reprimindo vontades e não nos permitindo ser quem realmente éramos.

Hoje, posso dizer que esse fantasma não me assombra mais. Basta refletir um pouco para perceber que não há nada negativo em gostar de sexo, querer ter experiências com várias pessoas e se permitir transar da forma que o corpo pede. Hoje, sinto pena pelos desejos reprimidos e por todos os gozos que ainda virão a ser censurados. Deixar que a puta que existe dentro de nós assuma o controle de vez em quando é necessário – e delicioso. Como sabiamente já dizia Caio Fernando Abreu, “um dia de monja, um dia de puta”.


publicado em 17 de Julho de 2011, 07:03
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Jaque Barbosa

A mulher do Casal Sem Vergonha. Pisciana, tradutora, editora de conteúdo e blogueira por acidente. Entusiasta do direito de se poder falar sobre sexo sem tabus. Pode ser encontrada também filosofando sem-vergonhices no Twitter: @ksalsemvergonha


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