Ele odiava aquelas merdas de bibelôs segurando a porra do pó em cima da estante marrom. Foi o primeiro lugar que pensou em descontar. Desceu o braço feito marreta, de cima para baixo, e esmigalhou a coruja e o sapinho de vidro, tingindo as migalhas cintilantes com a seiva vermelha que saía do pulso. Socou mais uma e duas vezes depois. Destruiu todas as ternurinhas dela enquanto mordia os próprios dentes feito cão faminto, babando enquanto o ar entrava e partia com violência, goela acima e goela abaixo quando respirava.
Ódio.
Deixou ela na festa e nem entrou. Estava contente dentro do carro quando se dirigiam, ainda como casal, para o aniversário da priminha. Cinco anos. No caminho, reclamou um pouco da gola da camisa enquanto a afastava do pescoço com os dedos estrategicamente enfiados no canto direito ao olhar pelo retrovisor. No assento do passageiro, ela nada dizia. As duas mãos apertando a bolsinha no colo, o olhar morto na direção do para-brisas e ele mexendo no rádio, trocando de estação, ligando a pendrive com canções que gostava. Aumentava o volume, perguntava se ela gostava mais da versão romântica "o pai te ama" ou se o proibidão pegava melhor na cabeça e repetia "meu pau te ama, meu pau te ama".
Ela quieta.
Perguntou, ele, então, o motivo do silêncio, da falta de papo, questionou a mudez dela que, parando pra pensar lá dentro do carro, parados no farol, já durava uns dias. Ela preferia conversar depois, pediu para voltarem no assunto após a comemoração de família, insistiu, quando ele seguiu perguntando, que deixassem para lá, que retomassem em outro momento. Ele insistiu. "Eu não sou mais feliz com você", finalmente ela soltou. "Eu não gosto mais de estar com você e não vejo minha vida sendo gostosa com você do meu lado e, por isso, a gente vai se separar".
Rosto quente, o áspero do volante queimando entre as mãos, xingou ela de nomes e impropérios, acelerou o carro, também calado, bateu a mão na buzina, freou de modo brusco duas quadras antes do endereço e, forçando o peso em cima dela, abriu a porta do carro e mandou ela sair. "Some da minha frente, vai!".
Rumou de volta pra casa e raspou a roda na calçada. Quebrou os mimos dela, pisou em cima do controle da televisão e arremessou os vinis dela pelo corredor. Rasgou vestidos, botou num balde de alumínio as fotos que eles tinham juntos num álbum e, tudo mergulhado em álcool, tocou fogo e viu a imagem do casal arder. Sorria um riso histérico enquanto assistia o subir de labaredas.
Pegou uma cerveja, engoliu tudo e abriu mais uma. Sentou-se no escuro e mandou mensagens para amigos dizendo que estava solteiro e na pista, que queria meter, transar, fazer farra, que queria tirar o atraso. Trocou status de relacionamento no Facebook e mandou o mundo às favas. Tirou os sapatos e os jogou pela janela. Começou a chorar. Copiosamente, assim, de soluçar mesmo.
Pegou o celular e mandou um áudio pra ela. "Volta pra mim, amor. Eu prometo que vou mudar".
O amor é o inferno.
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publicado em 06 de Janeiro de 2017, 00:10