O fetichismo da literatura

Há algumas décadas, as pessoas (especialmente as que gostavam de escutar músicas em suas vitrolas ou toca-discos) foram convencidas pelo mercado fonográfico a abandonar seus LP’s para comprarem o que havia de mais novo na tecnologia: os CD’s.

O que se viu então foi um descarte em massa de antigas coleções de discos de vinil, já que a forma revolucionária de escutar música ia dominar o mercado sonoro. Por todos os cantos, pessoas decepcionadas com o arcaísmo e empolgadas com a boa nova que lhes prometia maravilhas eternas descartavam seus bolachões a preço de banana ou até mesmo de graça.

"Que mané vinil que nada! Agora a onda é o CD!"
"Que mané vinil que nada! Agora a onda é o CD!"

Mas, como podemos constatar hoje, a promessa das grandes produtoras e gravadoras deu certo por um tempo, mas aos poucos foi se esvaziando até alcançar o cenário de compartilhamento gratuito de música via internet.

Apesar de ter dado essa pequena volta no começo do texto, cujo título aponta para o fetichismo na literatura, ainda quero mostrar um outro personagem cultural que também recebeu seu baque no decorrer da história recente: os filmes.

Logo após o começo da crise no mercado fonográfico, a vítima da vez seriam as fitas de videocassete, que, para resumir, também foram substituídas (primeiro pelos VCD’s e, depois, em definitivo, pelos DVD’s e discos de Bluray). Porém, assim como as vendas de CD’s, essa nova mídia para vídeos também sofreu graves abalos nos últimos anos. Os DVD’s seguiram o mesmo curso quando filmes passaram a ser adquiridos de graça na internet.

E a nova especulação digital é o objeto que vem insistindo em permanecer fiel ao seu formato tradicional: o livro.

O mercado está capitaneado por grandes corporações de produtores de equipamentos eletrônicos e, apesar da forte pressão exercida para que as pessoas troquem definitivamente o livro impresso pelo virtual, os usuários -- que normalmente são os consumidores finais conhecidos carinhosamente pela alcunha de “leitores” -- parecem não querer se render com tanta facilidade a esse capricho corporativo (leia-se “fatia de mercado”) e mantêm seu apego a diversas características que compõem o livro tradicional.

E por qual motivo isso acontece?

Leitores de livros já estão “escaldados”

Por questões de consumo de mídia, existe uma escala de facilidade entre as que citei nos parágrafos anteriores.

Com o tempo médio que varia entre dois e três minutos, a música pode ser considerada como a “estrutura” de mais fácil consumo. Além disso, para ser escutada, ela não precisa da total atenção da pessoa, que pode fazê-lo ao dirigir, conversar, dançar e até jogar futebol. Então, se a música tem esse tempo relativamente curto e o descompromisso de dedicação, um disco inteiro pode ser escutado em um intervalo de uma ou duas horas.

Afinal, mais legal que ouvir música sempre foi organizar a coleção de discos
Afinal, mais legal que ouvir música sempre foi organizar a coleção de discos

Logo em seguida, aparece o audiovisual, mais comumente representado pelo filme. Com praticamente a mesma média de duração de um disco, ele também não demanda muito tempo do consumidor. Porém, para a experiência ser completa, é necessário mais concentração, de modo que o consumo seja sequencial.

Por último aparece o “agressivo” e “egoísta” livro. O nosso tão querido livro só quer a atenção para ele e, para muitos usuários, até pequenas distrações são desastrosas para o entendimento do assunto tratado. Para se ler um livro, são necessárias inúmeras condições, mas a principal delas é tempo de concentração e contemplação.

Ao observar dessa maneira, parece até natural que a grande revolução propagandeada pelas corporações tenha começado pela música e queira terminar lucrando com a disponibilidade de livros eletrônicos. Entretanto, os consumidores de livros, mesmo que subconscientemente, já estavam escaldados, pois passaram pela mesma experiência quando se desfizeram de suas antigas coleções de vinil para comprar CD’s.

Por isso, não foram alvos tão fáceis de convencimento. E tudo por que ninguém contava com um detalhe muito importante: o fetichismo da literatura.

O livro como fetiche

Fetiche” tem origem do latim facticius, cujo significado remete a “articifial, fictício”. Suas variações se encontram na mesma base da palavra “feitiço”. Ele seria, então, um objeto no qual se atribuem poderes sobrenaturais ou mágicos, normalmente carregados de energias espirituais e/ou totêmicas.

Apesar de alguns pensadores terem formulado suas teorias fundamentando o fetiche sob a visão negativa de dominação, o aspecto que quero abordar aqui independe de valores morais, considerando apenas a “aura” (negativa ou positiva) que o livro carrega consigo.

Uma prática bastante recorrente dentre usuários literários é citar o crescimento exponencial de suas pilhas de leituras pendentes. Isso acontece porque, muitas vezes, a distância entre livros comprados e livros efetivamente lidos é grande. E são diversos os motivos que fazem as pessoas quererem ter livros em suas casas, mesmo não tendo tempo para lê-los.

Se você pensou "cacete, eu queria ter um desses!", você já está inserido no mundo do fetiche por livros
Se você pensou "cacete, eu queria ter um desses!", você já está inserido no mundo do fetiche por livros

Obs: a foto acima saiu da publicação da revista Casa Vogue "10 casas ideais para amantes de livros".

Um deles pode ser o legítimo interesse na leitura, que muitas vezes encontra obstáculos e impede o indivíduo de completar ou até iniciar o consumo; a pessoa compra o livro e, por algum contratempo, se vê impedida de ler.

Outro motivo pode ser o fato de que, quem tem livros em casa, parece ser mais inteligente. Nesse caso, a pessoa nem precisa ler, pois seu real interesse é mostrar que é culta por meio de sua estante abundante de livros. Então ela compra inúmeras coleções e títulos que enriquecem o seu arsenal e, quando uma visita aparece em casa, o proprietário tem orgulho de mostrar.

Muitos outros motivos podem ser citados, porém a aura fetichista do livro quase sempre é a condutora do comportamento. Mesmo aqueles que não têm o hábito de comprar muitos livros já tiveram essa experiência.

Quer um exemplo? Livros religiosos.

Certa vez, conversando com um amigo editor (que foi responsável pela produção de um livro religioso que se tornou um campeão de vendas alguns anos atrás), fiz a seguinte pergunta: “cara, que legal esse livro ter vendido uma quantidade tão grande (milhões) de exemplares, né? Assim teremos um aumento bem grande na quantidade de livros lidos pelos brasileiros”.

Ele me respondeu: “você acha que todas as pessoas que compraram o livro vão ler? Aí é que você se engana”.

Foi então que ele passou a me explicar que dificilmente uma pessoa comprava apenas um livro em uma tarde de autógrafos. Normalmente comprava entre cinco e dez livros. E por que faziam isso? Porque, na verdade, não estavam lá apenas por causa da leitura, mas sim para conseguir um autógrafo do autor -- que era uma famosa personalidade religiosa -- e, assim, ou poder colocar o livro em um lugar especial da casa (quase como uma relíquia sagrada) ou dar de presente para um parente enfermo com o intuito de curá-lo.

Foi a partir dessa conversa que passei a pensar cada vez mais profundamente nesse aspecto fetichista do livro. Para uma parcela daqueles milhões de compradores do livro, o potencial dele não era necessariamente literário. Era mágico. O livro tinha o poder de abençoar a casa e curar. Era como se o religioso autor depositasse energias espirituais no objeto, tornando-o um fetiche totêmico.

Dono de um poder único, o livro é uma plataforma que encanta seus usuários, principalmente depois que adotou o formato que hoje conhecemos. Esse modelo, unido ao desenvolvimento tecnológico, permitiu que as pessoas se apaixonassem pelo cheiro do livro, por uma capa maravilhosa, por um acabamento gráfico especial, pela textura da impressão, pela gramatura do papel, pelas cores aplicadas e pelo projeto gráfico.

Sem os livros na foto, a Fenranda Lima perde mais da metade de sua aura “cool”
Sem os livros na foto, a Fenranda Lima perde mais da metade de sua aura “cool”

Cada um desses pontos contribui para que as pessoas se apeguem ao objeto como se ele tivesse vida, como se realmente tivesse uma aura mágica.

Talvez, essa seja uma das razões para explicar como toda a pressão das grandes corporações para substituirmos nossos livros de papel por livros eletrônicos não esteja dando resultados tão rápidos e eficazes quanto como aconteceu com os vinis algumas décadas atrás.

Você, por exemplo, como trata os seus livros? Como consome literatura hoje em dia e, mais importante, há algum livro na sua casa com essa “aura especial”, essa coisa de gostar ou querer expôr para outras pessoas?

O nosso papo sobre fetiche começa aqui embaixo, nos comentários.


publicado em 27 de Fevereiro de 2014, 11:19
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Filipe Larêdo

Filipe Larêdo é um amante dos livros e aprendeu a editá-los. Atualmente trabalha na Editora Empíreo, um caminho que decidiu seguir na busca de publicar livros apaixonantes. É formado em Direito e em Produção Editorial.


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